quinta-feira, 16 de julho de 2009

Fichamento: TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

Apresentação à edição brasileira

O fenômeno formalista impregnou o campo da teoria literária, assim como as produções acadêmicas relacionadas às ciências sociais. Apesar de ser considerado um dos principais expoentes de tal corrente, Tzvetan Todorov modela sua argumentação ao redor da crítica à empregabilidade de tal modelo. O estruturalismo, quando se apresenta radical e exclusivo, “afasta a obra literária de toda relação possível que ela possa ter com o mundo, com o real, com a vida” (TODOROV, página 8). Tenta-se a captação da verdade intrínseca do texto como um mundo à parte, buscando-se alcançar a maior imanência possível da obra. Para Todorov, o perigo que hoje ronda a literatura é “o de não ter poder algum, o de não participar da formação cultural do indivíduo, do cidadão” (TODOROV, página 8). Isto quer dizer que não faltam aos estudantes de letras, por exemplo, capacidade intelectual ou espírito crítico, falta-lhes atribuir à literatura um significado mais amplo, talvez irredutível à dissecação estruturalista, onde a literatura faz parte tanto da formação intelectual quanto também afetiva. Como diz Caio Meira, “o contato maior que qualquer aluno do ensino médio tem com o texto literário de fato se dá seja nas abonações e exemplos que auxiliam na compreensão das regras e formações da língua portuguesa, seja nas próprias aulas de literatura, que se resumem principalmente ao ensino da história e dos gêneros literários” (TODOROV, página 9)
A principal problemática que Todorov apresenta é como a literatura tem sido apresentada aos jovens, desde a escola primária até a faculdade. O estudante não entraria em contato com os textos diretamente, haveria uma inversão, fazendo com que tivesse contato primeiramente com alguma forma de crítica, de teoria ou de história literária, o que caracterizaria o acesso á literatura como algo disciplinar e institucional. Todorov em nenhum momento nega a contribuição estruturalista, apenas renega-a ao seu devido espaço. “Ou seja, o que Todorov reivindica é que o texto literário volte a ocupar o centro e não a periferia do processo educacional (e, por conseguinte, na nossa formação como cidadãos), em especial nos cursos de literatura” (TODOROV, página 11). Literatura como algo, antes de tudo, social, e que tudo seja lido e discutido por gosto e interesse antes de ser classificado ou periodizado.

Prólogo

Venerar a leitura possibilita adentrar no universo dos escritores, sejam eles clássicos ou contemporâneos. O estudo das ciências humanas se mostra imparcial quando dominado por alguma ideologia (o ideal socialista, por exemplo). Deve-se tratar os objetos sem nenhum cerne ideológico, mas não limitar-se a analisar um texto simplesmente a partir de sua materialidade, seus recursos lingüísticos, pois isso limitar-se-ia a uma simples análise de técnica literária. Quando mudou-se para a Paris por motivos de estudos, e em contato com Roland Barthes, professor da École des Hautes Études, Todorov comenta que tentaram “modificar a orientação do ensino literário na universidade, a fim de libertá-la dos grilhões das nações e dos séculos, e promover sua abertura a tudo que pode aproximar as obras umas das outras” (TODOROV, páginas 20-21). A partir de então, a influência da democracia pluralista francesa mostrou-se predominante sobre o totalitarismo búlgaro a que estava acostumado. Como ele mesmo diz: “minhas escolhas de abordagem da literatura: o pensamento e os valores contidos em cada obra não se viam mais aprisionadas numa coleira ideológica preestabelecida; não havia mais razões para pô-los de lado e ignorá-los. As causas de meu interesse exclusivo pela matéria verbal dos textos haviam desaparecido. De meados dos anos 70 em diante, perdi o interesse pelos métodos de análise literária e passei a me dedicar à análise em si, isto é, aos encontros com os autores. A partir daí, meu amor pela literatura não se via mais limitado à educação recebida em meu país totalitário. De imediato, tive que procurar dominar novas ferramentas de trabalho; senti necessidade de me familiarizar com elementos e conceitos da psicologia, da antropologia e da história. Uma vez que as idéias dos autores recuperavam todas as suas forças, quis, para melhor compreendê-los, mergulhar na história do pensamento que concerne ao homem e suas sociedades, na filosofia moral e política. Sendo assim, o próprio objeto desse trabalho de conhecimento se ampliou. A literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles numerosas características; não é por acaso que, ao longo da história, suas fronteiras foram inconstantes. Senti-me atraído por essas formas diversas de expressão, não em detrimento da literatura, mas ao lado dela” (TODOROV, páginas 21-22).
“Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. (...) A literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. (...) A literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano” (TODOROV, páginas 23-24). Desta maneira, o autor destaca a possibilidade de a literatura ser passível de uma utilização subjetiva, para a formação individual de cada indivíduo como tal.

A literatura reduzida ao absurdo

Ao analisar a literatura ensinada nos colégios, Todorov evidencia o papel controverso que a mesma adquire. Compreende que os estudos literários, primeiramente, têm como objetivo de nos fazer conhecer os instrumentos do quais se servem. “Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre as noções críticas, tradicionais ou modernas. Na escola não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos. (...) O ensinar uma disciplina, a ênfase deve recair sobre a disciplina em si ou sobre seu objeto?” (TODOROV, página 27). O pleno sentido do estudo literário, segundo o autor, é a obra em sua essência. “Todos esses objetos de conhecimento são construções abstratas, conceitos forjados pela análise literária, a fim de abordar as obras; nenhum diz respeito ao que falam as obras em si, seu sentido, o mundo que elas evocam. Em sua aula, na maior parte do tempo, o professor de literatura não pode se resumir a ensinar, como lhe pedem as instruções oficiais, os gêneros e os registros, as modalidades de significação e os efeitos da argumentação, a metáfora e a metonímia, a focalização interna e externa etc” (TODOROV, página 28). Nota-se sua intenção em um estudo da literatura capaz de conduzir a um objeto exterior (o mundo), em contraposição a busca da construção arcaica da disciplina. As teorias a respeito das obras sobrepõem-se à abordagem da própria obra. Todorov não tira a importância da análise estruturalista, apenas coloca-a em seu devido lugar. “Pode ser útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim. Para erguer um prédio é necessária a montagem de andaimes, mas não se deve substituir o primeiro pelos segundos. (...) As inovações trazidas pela abordagem estrutural (...) são bem-vindas com a condição de manter sua função de instrumentos, em lugar de se tornarem seu objetivo próprio. (...) Os ganhos da análise estrutural, ao lado de outros, podem ajudar a compreender melhor o sentido de uma obra. É preciso ir além. Não apenas estudamos mal o sentido de um texto se nos atemos a uma abordagem interna estrita, enquanto as obras existem dentro e em diálogo com um contexto; não apenas os meios não devem se tornar o fim, nem a técnica nos deve fazer esquecer o objetivo do exercício” (TODOROV, páginas 31-32).
Antes de tudo, lê-se a literatura por prazer, buscando a realização pessoal e um maior ordenamento e compreensão do homem e do mundo em si. É isso que gera o amor à mesma. Entendido isto, soma-se o uso de estruturas que auxiliem (e não ditem) sua análise. “O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um” (TODOROV, página 33).

Além da escola

O ensino nas escolas nada mais é que um reflexo do mesmo nas universidades, conclui o autor. Esta tendência advém desde os anos de 1960/1970, sob a bandeira estruturalista. Principalmente na França, a explicação do texto era calcada a partir de um contexto histórico e nacional. “Antes de se interrogarem longamente sobre o sentido das obras, os doutorandos preparavam um inventário exaustivo acerca de tudo que as cercava: biografia do autor, protótipos possíveis das personagens, variantes da obra, além das reações provocadas por ela em seu tempo. (...) A meu ver, tanto hoje quanto naquela época, a abordagem interna (estudo das relações dos elementos da obra entre si) devia completar a abordagem externa (estudo do contexto histórico, ideológico, estético). O aumento da precisão dos instrumentos de análise permitia estudos mais agudos e rigorosos; o objetivo último, porém, permanecia a compreensão do sentido das obras” (TODOROV, página 36). Em outro estudo seu, antecedente a este livro, Tzvetan Todorov diz que “a desvantagem desse tipo de trabalho é, digamos, sua modéstia, o fato de não ir longe o suficiente, não passando de um estudo preliminar, que consiste precisamente em constatar e identificar as categorias em jogo no texto literário, e não a nos falar do sentido do texto” .
Depois de maio de 1968 as estruturas universitárias e as hierarquias até então existentes modificaram-se profundamente, no entanto, não houve um equilíbrio, rumando-se assim ao extremo oposto: passou-se a prevalecer as abordagens internas e as categorias da teoria literária (embora esta mutação não possa ser considerada causa exclusiva da influência do estruturalismo). Até este momento, valorizava-se o estudo das causas sociais que conduzissem o surgimento da obra, as forças (sociais, políticas, ideológicas, entre outras) que direcionassem o texto literário, inclusive seu impacto no público. “A preferência, assim, era concedida à inserção da obra literária numa cadeia causal. (...) Esse estudo era criticado por nunca poder se tornar científico o bastante, sendo então abandonado a outros comentadores, desvalorizados, a escritores ou a críticos de jornais. A tradição universitária não concebia a literatura como a encarnação de um pensamento e de uma sensibilidade, tampouco como interpretação do mundo” (TODOROV, página 38). A partir da ruptura estruturalista, “a obra impõe o advento de uma ordem em estado de ruptura com o existente, a afirmação de um reino que obedece a suas leis e lógicas próprias” , ou seja, a obra literária passa a ser representada como um objeto de linguagem fechada, auto-suficiente, absoluta em si. Isso refletiu no ensino da literatura no ensino médio (a literatura não teria relações com o restante do mundo, passíveis seriam as relações dos elementos da obra entre si), o que agravaria o desinteresse dos estudantes pelo texto literário em geral.
Da corrente estruturalista de análise origina-se uma variante. “Diversamente do estruturalismo clássico, que afastava a questão da verdade dos textos, o pós-estruturalismo quer de fato examinar essa questão, mas seu comentário invariável é que ela nunca receberá qualquer resposta. O texto só pode dizer uma única verdade, a saber: que a verdade não existe ou que ela se mantém sempre inacessível” (TODOROV, página 40). Quase como o behaviorismo em relação ao acesso ao inconsciente. Ao analisar o ensino da literatura no ensino médio, Todorov não mede palavras pala classificar o mesmo como promotor de uma “concepção redutora da literatura” (TODOROV, página 41). Tais fatos atentam para outro ponto crucial: o de que muitos escritores na verdade esperariam por elogios da crítica literária (o que ditaria um rumo artificial da sua obra, como algo pré-moldado segundo tendências e influências). “Numerosa obras contemporâneas ilustram essa concepção formalista da literatura; elas cultivam a construção engenhosa, os processos mecânicos (grifo meu) de engrendamento do texto, os ecos e os pequenos sinais cúmplices. (...) Outra tendência influente encarna uma visão de mundo que poderíamos qualificar de niilista, segundo a qual os homens são tolos e perversos, as destruições e as formas de violência dizem a verdade da condição humana, e a vida é o advento de um desastre. Não se pode mais, nesse caso, afirmar que a literatura não descreve o mundo: mais do que uma negação da representação, ela se torna a representação de uma negação. O que não a impede de permanecer como objeto de uma crítica formalista: já que, para essa crítica, o universo representado no livro é auto-suficiente, sem relação com o mundo exterior, abrem-se as portas para sua análise sem que se tenha de interrogar sobre a pertinência das opiniões expressas no livro, nem sobre a veracidade do quadro que ele pinta. A história da literatura o mostra bem: passa-se facilmente do formalismo ao niilismo ou vice-versa, e podem-se mesmo cultivar os dois simultaneamente. (...) Outra prática literária provém, com efeito, de uma atitude complacente e narcisística que leva o autor a descrever detalhadamente suas menores emoções, suas mais insignificantes experiências sexuais, suas reminescências mais fúteis: quanto mais repugnante, mais fascinante é o mundo! Falar mal de si, aliás, não destrói esse prazer, já que o essencial é falar de si – o que se diz é secundário. A literatura (nesse caso, diz-se preferencialmente, a ‘escrita’) tornou-se apenas um laboratório no qual o autor pode estudar a si mesmo a seu bel-prazer e tentar se compreender. É possível qualificar essa terceira tendência, após as do formalismo e do niilismo, de solipsismo, de acordo com essa teoria filosófica que postula que o si mesmo é o único ser existente. A falta de verossimilhança dessa teoria, de fato, a condena à marginalidade, mas isso não impede que ela se torne um programa de criação literária” (TODOROV, páginas 42-43).
Desta maneira, “niilismo e solipsismo são claramente solidários. Ambos repousam na idéia de que uma ruptura radical separa o eu e o mundo, isto é, de que não existe mundo comum. (...) o niilismo omite a inclusão de um lugar para si mesmo e para os que lhe são semelhantes no quadro de desolação por ele pintado; o solipsismo negligencia a representação do contexto humano e material que o torna possível. Niilismo e solipsismo mais completam a escolha formalista do que a refutam: a cada vez, mas a partir de modalidades diferentes, é o mundo exterior, o mundo comum a mim e aos outros, que é negado e depreciado. (...) A criação contemporânea francesa é solidária da idéia da literatura que se pode encontrar na base do ensino e da crítica: uma idéia absurdamente restrita e empobrecida” (TODOROV, página 44).

Nascimento da estética moderna

O autor enumera etapas para melhor compreender a tese segundo a qual a literatura não mantém ligação significativa com o mundo (e que, por conseguinte, sua apreciação não deve levar em conta o que ela nos diz do mundo). Numa visão clássica, a poesia caracteriza-se por agradar e instruir, ao mesmo tempo em que é uma imitação da natureza. Visto isso, sua “relação com o mundo encontra-se, assim, tanto do lado do autor, que deve conhecer as realidades do mundo para poder imitá-las, quanto do lado dos leitores e ouvintes, que podem, é claro, encontrar prazer nessas realidades, mas que delas também tiram lições aplicáveis ao restante de sua existência. (...) A partir do Renascimento, pede-se à poesia que seja bela, mas a própria beleza se define pela verdade e sua contribuição ao bem” (TODOROV, página 46).
A modernidade abala essa concepção. Primeiro, “consiste em retomar e revalorizar uma antiga imagem: o artista criador, comparável ao Deus criador, engrenda conjuntos coerentes e fechados e si mesmos. O Deus do monoteísmo é um ser infinito que produz um universo finito; ao imitá-lo, o poeta se assemelha ao deus que fabrica objetos finitos” (TODOROV, páginas 46-47). Exige-se coerência nas criações, não uma correspondência qualquer da obra com algo que ela não é. “O poeta ilustra essas categorias, já que cria um mundo paralelo ao mundo físico existente, um universo tão independente quanto coerente” (TODOROV, página 47). No segundo caso, consiste-se em dizer que o objetivo da poesia não é imitar a natureza, muito menos instruir e agradar, mas produzir o belo. “O belo se caracteriza pelo fato de não conduzir a nada que esteja para além de si mesmo. (...) Não é mais o criador que, em sua liberdade, se aproxima de Deus; é a obra em sua perfeição” (TODOROV, página 48). Como resultado disso, nos séculos XVII e XVIII, o contemplar estético, o juízo de gosto e o sentido do belo passam a ser instituídos como entidades autônomas. “O que há de revolucionário nessa abordagem é que ela conduz ao abandono da perspectiva do criador para adotar a do receptor, que, por sua vez, só tem um único interesse: contemplar belos objetos. (...) Visto a partir da perspectiva da criação ou da fabricação, o artista é apenas um artesão de melhor qualidade: os dois praticam o mesmo ofício, com um pouco mais ou um pouco menos de talento. Ora, se nos situamos do lado de seus produtos, o artesão se opõe ao artista, pois, se um cria objetos utilitários, o outro cria objetos a serem contemplados apenas pelo prazer estético proporcionado; um obedece a seu interesse, e o outro permanece desinteressado; um se situa sob a lógica do usar, e o outro na do fruir; e, por fim, um permanece puramente humano, e o outro se aproxima do divino” (TODOROV, página 50). Assim, nota-se que as artes exigem um local em que podem ser consumidas (museus, galerias, etc), o que caracteriza o objetivo único de serem contempladas e apreciadas por seu valor estético.
“Os dois movimentos que transformam no século XVIII a concepção de arte, isto é, a assimilação do criador a um deus fabricante do microcosmo e a assimilação da obra a um objeto de contemplação, ilustram a progressiva secularização do mundo na Europa ao mesmo tempo em que contribuem para uma nova sacralização da arte. Nesse momento da história, a arte encarna tanto a liberdade do criador como a sua soberania, sua auto-suficiência e sua transcendência com relação ao mundo. (...) A ausência de finalidade externa é, de algum modo, compensada pela densidade das finalidades internas, ou seja, pelas relações entre as partes e os elementos da obra” (TODOROV, página 52). Assim, há uma maior significação e potencial de análise da obra quando vista através do prisma interno (caracteres externos de formação da mesma são ignorados).

A estética das Luzes

Com a deteriorização do mecenato, o artista destina suas obras ao público que as adquire: é o público que passa a ter as chaves do seu sucesso. O que se reservava a poucos, agora torna-se acessível a todos. Põem-se em pé de igualdade todos os consumidores. “O espírito das Luzes é o da autonomia do indivíduo; a arte que conquista sua autonomia participa do mesmo movimento” (TODOROV, página 53). “O que é belo é harmonioso e proporcional. O que é harmonioso e proporcional é verdadeiro, e o que é ao mesmo tempo belo e verdadeiro é, por conseguinte, agradável e bom. O processo de percepção e a ação dos sentidos não esgotam a experiência dita estética, e menos ainda porque a arte considerada habitualmente como exemplar, a poesia, não é em sua essência relativa à visão nem à audição, mas exige a mobilização do espírito: a beleza da poesia sustenta-se em seu sentido e não pode ser separada da verdade. Esses pensadores não renunciam, portanto, a ler as obras literárias como um discurso sobre o mundo, mas procuram, especialmente, distinguir entre duas vias, a dos poetas e a dos cientistas (ou filósofos), cada uma delas com suas vantagens, sem que uma seja inferior à outra: duas vias que conduzem ao mesmo objetivo, uma melhor compreensão do homem e do mundo, uma sabedoria mais ampla” (TODOROV, páginas 54-55). O poeta é, assim, concebido como o criador de um mundo possível entre outros (legitimando a perspectiva estética, privilegiando a percepção em detrimento da criação). Desta maneira, a verdade à que conduz é de natureza diversa daquela das ciências, “(...) O nome que lhe convém é o de ‘verossimilhança’, e seu efeito é ‘produzido pela coerência interna do mundo criado’. A abstração apreende o geral ao custo, porém, de um empobrecimento do mundo sensível; a poesia capta sua riqueza, mesmo que as conclusões às quais chega careçam de clareza; o que ela perde em acuidade, ganha em vivacidade” (TODOROV, página 56).
O grande autor do iluminismo alemão, Lessing, diz que a especificidade da obra de arte é produzir o belo, e este se define como uma harmonia de seus elementos constitutivos sem submissão a um objeto exterior. Por outro lado, “a obra participa de um conjunto mais amplo de práticas que têm como objetivo buscar a verdade do mundo e de conduzir os homens em direção à sabedoria” (TODOROV, página 56). Assim, o autor alemão não renuncia a alocar a arte no centro das atividades representativas (“essa imitação que é a essência da arte do poeta”, ele escreve). O escritor criaria um mundo coerente, porém autônomo e a obra, de uma forma ou de outra, acaba por escapar a seu autor. É bom lembrar, como já foi dito, que a verdade poética, no entanto, é diferente da do mundo científico, pois tem mais a ver com a verossimilhança. Não se trata de uma verdade puramente equivalente a uma realidade. “O belo não pode ser estabelecido objetivamente, uma vez que provém de um juízo de gosto e reside, portanto, na subjetividade dos leitores e espectadores; mas ele pode ser reconhecido pela harmonia dos elementos da obra e tornar-se objeto de consenso. (...) A arte pela arte, e sem objetivo; todo objetivo desnatura a arte. Mas a arte atinge o objetivo que não tem” (TODOROV, páginas 58 e 59). É notável que a obra venha a agir sobre o espírito do leitor, embora, “a instrução não será o objetivo, mas o efeito do quadro” . Como o próprio Constant enfatiza, “a literatura refere-se a tudo. Não pode ser separada da política, da religião, da moral. É a expressão das opiniões dos homens sobre cada uma das coisas. Como tudo na natureza, ela é ao mesmo tempo efeito e causa. Imaginá-la como fenômeno isolado é não imaginá-la” . Todorov complementa sua fala ao dizer que “poesia pura não existe: toda poesia é necessariamente impura, pois necessita de idéias e valores; ora, tanto um quanto outro não lhe pertencem propriamente” (TODOROV, página 60)

Do Romantismo às vanguardas

A estética iluminista deslocara o centro da gravidade da imitação à beleza, afirmando assim a autonomia da obra de arte. Porém, esta estética não ignora as relações que ligam as obras ao real. Visto isso, é notável destacar que a estética romântica, imposta a partir do início do século XIX, não introduz nenhuma ruptura exorbitante. “Deve ser lembrado, no entanto, que é nesse mesmo momento que o prestígio da ciência começa a crescer vertiginosamente; é sem surpresa que se vê a reivindicação romântica não encontrar nenhum eco favorável na sociedade contemporânea” (TODOROV, página 62). Como o próprio Baudelaire instigava, a poesia não se submeteria à procura da verdade ou do bem, já que é detentora de uma verdade e de um bem superiores àqueles que podemos encontrar fora dela (em frase sua, “a imaginação é a mais científica das faculdades porque apenas ela pode compreender a analogia universal”). Assim, a arte e a poesia não deixam de ter algo a ver com a verdade, mas esta não tem a mesma natureza que aquela inspirada pela ciência. “(...) Uma relação se estabelece entre as palavras e o mundo, mas as duas verdades não se confundem” (TODOROV, página 64). O copiar e o interpretar encontram-se assim em campos opostos. “Trata-se aqui de uma verdade de correspondência ou de adequação. (...) A própria beleza não é uma noção nem objetiva (que possa ser estabelecida a partir de indícios materiais) nem subjetiva, ou seja, que dependa do juízo arbitrário de cada um; ela é inter-subjetiva, pertencente, portanto, à comunidade humana” (TODOROV, páginas 64-65).
“A função da literatura é criar, partindo do material bruto da existência real, um mundo novo que será maravilhoso, mais durável e mais verdadeiro do que o mundo visto pelos olhos do vulgo. Ora, criar um mundo mais verdadeiro implica que a arte não rompe sua relação com o mundo” (TODOROV, página 66). Assim ela é: autônoma, ao mesmo tempo que dependente do cenário que a cerca, do mundo em si.
No começo do século XX nota-se uma ruptura. A partir de então, a pretensão da literatura ao conhecimento não deixa de ser legítima (e os discursos da filosofia e da ciência vêem-se marcados pela mesma suspeita). “Desse momento em diante, cava-se um abismo entre a literatura de massa, produção popular em conexão direta com a vida cotidiana de seus leitores, e a literatura de elite, lida pelos profissionais – críticos, professores e escritores – que se interessam somente pelas proezas técnicas de seus criadores. De um lado, o sucesso comercial; do outro, as qualidades puramente artísticas. Tudo se passa como se a incompatibilidade entre as duas fosse evidente por si só, a ponto de a acolhida favorável reservada a um livro por um grande número de leitores tornar-se o sinal de seu fracasso no plano da arte, o que provoca o desprezo ou o silêncio da crítica” (TODOROV, página 67)
Com as vanguardas, advém uma nova concepção da arte em si. Tal movimento se manifesta pela primeira vez na Rússia, em 1910, e trata-se do início da abstração na pintura e das invenções futuristas na poesia. Assim, esquece-se o mundo material, a arte agora obedece às suas próprias leis. “Como conseqüência, o mundo fenomenal, o mundo acessível aos olhos de todos deixa de ser levado em consideração. (...) A intersubjetividade, que repousa na existência de um mundo comum e de um sentido comum, dá lugar à pura manifestação do indivíduo” (TODOROV, páginas 68-69).
“Nos regimes totalitários instalados no pós-guerra, (...) há a preocupação de colocar a arte a serviço de um projeto utópico, o da fabricação de uma sociedade inteiramente nova e de um homem novo. O realismo socialista, a arte do ‘povo’ e a literatura de propaganda ideológica exigem a manutenção de uma relação de força com a realidade circundante e, sobretudo, também impõem a submissão aos objetivos políticos do momento, o que se mostra diametralmente oposto a toda proclamação de autonomia artística e a toda procura solitária do belo. A arte deve, como exige a estética clássica, agradar (um pouco), mas sobretudo, instruir. Muitos artistas virão responder com tanto entusiasmo e com tanta adesão a essa questão, que eles próprios passarão a chamá-la de a revolução dos seus anseios. Ao mesmo tempo, mas em locais onde reina a liberdade de expressão, inicia-se um combate a essa usurpação da autonomia do indivíduo, afirmando-se que a arte e a literatura não mantém nenhuma ligação significativa com o mundo. (...) Tudo se passa como se a recusa em ver a arte e a literatura subjugadas à ideologia acarretasse necessariamente a ruptura definitiva entre a literatura e o pensamento; como se a rejeição das teorias marxistas do “reflexo” exigisse o desaparecimento de toda relação entre a obra e o mundo. Ao utopismo de uns corresponde o formalismo dos outros” (TODOROV, páginas 69-70). Nos dias atuais, a sociedade caracteriza-se pela coexistência mais ou menos pacífica tanto de ideologias diferentes quanto de concepções concorrentes da arte.

O que pode a literatura?

Um livro pode expressar muito bem os sentimentos do leitor que o usufrui. Os personagens se tornam mais importantes que os de carne e osso encontrados no dia-a-dia, visto que são inesgotáveis em suas possibilidades. “A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro. A literatura tem uma papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo. (...) A literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo” (TODOROV, páginas 76-77). Desta maneira, a literatura nos faz viver experiências singulares. “O escritor não faz a imposição de uma tese, mas incita o leitor a formulá-la: em vez de impor, ele propõe, deixando, portanto, seu leitor livre ao mesmo tempo em que o incita a se tornar mais ativo” (TODOROV, página 78). A obra literária produz um tremor de sentimentos, abalando o aparelho da interpretação simbólica, despertando assim a capacidade de associação que continuam muito tempo após o contato inicial (elemento este que o leitor do texto científico não encontra).
A literatura contribui assim para nossa compreensão do mundo. A leitura de romances nos possibilita contatos com personagens, analisando suas ações e dizeres, interpretando-os. “Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de imediato, pois cada ação tem o ponto de vista do seu autor. Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo. (...) O que o romance nos dá não é um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicação com seres diferentes de nós; nesse sentido eles participam mais da moral do que da ciência” (TODOROV, páginas 80-81). O autor quer que se aceite a forte relação da literatura com o mundo, assim como a contribuição da mesma para a formação moral do indivíduo. Fechando o capítulo, Todorov complementa que “é por isso que devemos encorajar a leitura por todos os meios – inclusive a dos livros que o crítico profissional considera como condescendência, se não com desprezo, desde Os Três Mosqueteiros até Harry Potter: não apenas esses romances populares levaram ao hábito da leitura milhões de adolescentes, mas, sobretudo, lhes possibilitaram a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, que, podemos nos assegurar, as leituras posteriores se encarregarão de tornar mais complexas e nuançadas” (TODOROV, página 82).

Uma comunicação inesgotável

A veracidade seria a única exigência legítima a se fazer à literatura. Que se submeta a verdade ou a moral? É necessário primeiro alocar o escritor na sua própria obra, além de averiguar a natureza da verdade à qual ela ascende. Assim, uma preocupação com a verdade resultará necessariamente em um efeito moral (não se trata de uma moral puramente exposta, mas percebida, e assim possa ser aceita ou rejeitada). Se isso não ocorre, das duas uma: ou o livro é muito ruim ou o leitor é um imbecil. “O objetivo da literatura é representar a existência humana, mas a humanidade inclui também o autor e o seu leitor. ‘Você não pode se abstrair dessa contemplação; pois o homem é você, e os homens são o leitor. Por mais que faça, sua narrativa sempre será uma conversa entre você e esse leitor’. A narrativa está necessariamente inserida num diálogo do qual os homens não são apenas o objeto, mas também os protagonistas” (TODOROV, página 86). Não se procura algo durante a leitura, simplesmente se acha algo que identifique o leitor à obra que lê, tendo como conseqüência uma visão mais definitiva e ampla da vida em geral. “A verdadeira realidade é uma mistura de beleza e feiúra, de palidez e luminosidade. Assim, aqueles que num certo momento foram chamados de realistas fizeram uma escolha que trai a realidade: eles obedecem a uma convenção arbitrária que lhes exige representar unicamente a face negra do mundo” (TODOROV, página 87).
A literatura anseia, sobretudo, por uma forma de verdade, no entanto, debates são construídos ao redor da veracidade destas narrativas. O que é certo é que a obra literária transforma o ser de cada um dos seus leitores a partir de seu interior. Isto liberta a literatura do espartilho asfixiante que a prende, percorrer-se-iam assim horizontes mais amplos, retirando-a do gueto formalista que interessa apenas aos críticos, proporcionando à obra literária em si a abertura para o grande debate de idéias do qual participa todo conhecimento do homem. Concluindo a problemática anteriormente apresentada, “a análise das obras feitas na escola não deveria mais ter por objetivo ilustrar os conceitos recém-introduzidos por este ou aquele lingüista, este ou aquele teórico da literatura, quando, então, os textos são apresentados como uma aplicação da língua e do discurso; sua tarefa deveria ser a de nos fazer ter acesso ao sentido dessas obras – pois postulamos que esse sentido, por sua vez, nos conduz a um conhecimento do humano, o qual importa a todos” (TODOROV, página 89).
“O estudo da obra remete a círculos concêntricos cada vez mais amplos: o dos outros escritos do mesmo autor, o da literatura nacional, o da literatura mundial; mas seu contexto final, o mais importante de todos, nos é efetivamente dado pela própria existência humana. Todas as grandes obras, qualquer que seja a sua origem, demandam uma reflexão dessa dimensão. O que devemos fazer para desdobrar o sentido de uma obra e revelar o pensamento do artista? Todos os ‘métodos’ são bons, desde que continuem a ser meios, em vez de se tornarem fins em si mesmos. (...) Aquilo de que nos damos conta, gradualmente, é que todas as perspectivas de um texto, longe de serem rivais, são complementares – desde que se admita de início que o escritor é aquele que observa e compreende o mundo em que vive” (TODOROV, página 91).
Todorov prega o entendimento da literatura de uma maneira ampla e, embora se reconheçam as virtudes das obras literárias, não é certo que a verdadeira vida é a literatura ou que tudo no mundo existe para se conduzir a um livro. “Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano” (TODOROV, páginas 92-93).

segunda-feira, 13 de julho de 2009

CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. pp. 13-49.

Crítica e Sociologia

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O autor Antônio Cândido preza por uma análise sistemática acerca da contribuição das ciências sociais para com o estudo literário, não esquecendo de atribuir importância à crítica literária pura e simples. O que se deve buscar, segundo ele, é “(...) que se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de vista objetivo, sem desfigurá-la de um lado nem de outro” (CANDIDO, página 13). Defende uma complementaridade entre as divergentes áreas, analisando o vínculo entre a obra e o ambiente, não deixando de lado a análise estética do relato literário. “O externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se assim, interno” (CANDIDO, página 14).

O que importa é uma abordagem que encare a obra literária como um conjunto de fatores sociais que atuem sobre a formação da mesma (além da influência que a mesma exerce no meio social a que pertence, depois de concluída e divulgada). O fator social não disponibiliza apenas as matérias, mas também atua na constituição do que há de essencial na obra enquanto obra de arte. Deve-se perceber a literatura como um todo indissolúvel, fruto de um tecido formado por características sociais distintas, porém complementares.

Apontar as dimensões sociais de um livro (referências a lugares, datas, manifestações de determinados grupos sociais presentes na estória, etc) é tarefa de rotina, não bastando assim para definir um caráter sociológico de estudo. Deve-se partir de uma análise das relações sociais, para aí sim compreendê-las e estudá-las em um nível sociológico mais profundo, levando-se em conta a estrutura formada no livro. Diz o autor: “Quando fazemos uma análise desse tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo” (CANDIDO, páginas 16 e 17). Não é a literatura por ela mesma, mas pelo social. Assim, pode-se sair de uma análise sociológica periférica e sem fundamentos, não se limitando a uma referência à história sociologicamente orientada. Tudo faz parte de um “fermento orgânico” (CANDIDO, página 17), onde a diversidade se torna coesa e possibilita um estudo mais aprofundado e estruturado em bases históricas, sociológicas e críticas. Segundo esta ótica, o ângulo sociológico adquire uma real validade científica (inserida em um contexto social real). “Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou lingüística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize como componente da estruturação da obra” (CANDIDO, página 17). Tende-se assim a uma pesquisa mais concreta.

Antônio Cândido atenta também para um perigo comum, que seria o fato de muitos estudiosos atribuírem integridade e autonomia às obras que estudam além dos limites cabíveis, resultando assim em uma maior interiorização da obra (a obra por ela mesmo e nada mais), fazendo com que, por exemplo, fatores históricos entrassem e detrimento na pesquisa. Em suma, o autor carioca diz que “(...) convém evitar novos dogmatismos” (CANDIDO, página 18), e que não podemos “dispensar nem menosprezar disciplinas interdependentes como a sociologia da literatura e a história literária sociologicamente orientada, bem como toda a gama de estudos aplicados à investigação de aspectos sociais das obras” (CANDIDO, página 18).

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O autor enumera seis modalidades de estudos do tipo sociológico no campo literário, oscilando entre a sociologia , a história e a crítica de conteúdo:
1) Relacionamento do conjunto de uma literatura (um período, um gênero) com as condições sociais. Esta abordagem metodológica tradicional seria oriunda do século XVIII. Teria, como virtude, mapear uma ordem geral, um arranjo. Como defeito, traria dificuldades em mostrar a ligação entre as condições sociais e as obras. “(...) Como resultado decepcionante, uma composição paralela, em que o estudioso enumera os fatores (...), e em seguida fala das obras segundo as suas intuições ou os seus preconceitos herdados, incapaz de vincular as duas ordens de realidade” (CANDIDO, página 19).
2) Verificar a medida em que as obras espelham ou representam a sociedade, descrevendo seus vários aspectos. Seria a modalidade mais comum, consistindo em estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem nos livros.
3) Análise de cunho estritamente sociológico, consistindo no estudo da relação entre a obra e o público (isto é, o seu destino, a sua aceitação, a ação recíproca de ambos). Exploraria a função da literatura junto aos leitores, mediante a aceitação, ou não, da mesma.
4) Estudo da posição e função social do escritor, procurando relações entre sua posição e a natureza de sua produção literária, e ambas com a organização da sociedade. Nada mais é que a análise da situação e do papel destes intelectuais na formação da sociedade.
5) Investigação da função política das obras e dos autores (em geral, atenderia a intuitos ideológicos previamente determinados).
6) Investigação hipotética das origens, buscando uma essência particular (seja da literatura em geral, ou de determinados gêneros).
Cada tipo de abordagem decai sobre um ângulo específico. Segundo Antônio Cândido, acerca das escolhas metodológicas sociais a se trabalhar a literatura, “em todas nota-se o deslocamento da obra para os elementos sociais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que influíram na sua elaboração, ou para a sua função na sociedade” (CANDIDO, página 21). Não se nega o entrelaçamento de diversos fatores sociais nas obras literárias, mas, determinar se estes interferem diretamente nas características essenciais de determinada obra pode levar alguns estudiosos a um abismo difícil de se transpor.

O autor converge em opinião com o argumento de Adriana Facina ao dizer: “O primeiro passo (que apesar de óbvio dever ser assinalado) é ter consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente” (CANDIDO, página 22). O autor defende e justifica esse caráter distorcido da literatura ao afirmar que “esta liberdade, mesmo dentro da orientação documentária, é o quinhão da fantasia, que às vezes precisa modificar a ordem para torná-la mais expressiva de tal maneira que o sentimento da verdade se constitui no leitor graças a esta traição metódica. Tal paradoxo está no cerne do trabalho literário e garante a sua eficácia como representação do mundo. Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la é correr o risco de uma perigosa simplificação causal” (CANDIDO, página 22).

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O social passa por um processo de interiorização em que o autor o reconstrói, elaborando-o de uma maneira estética diferenciada (não deixando de ser subjetiva e arbitrária). Determinadas visões específicas são o que delineiam a construção estética de um livro. Ainda, a “a criação, não obstante singular e autônoma, decorre de uma certa visão do mundo, que é fenômeno coletivo na medida em que foi elaborada por uma classe social, segundo o seu ângulo ideológico próprio” (CANDIDO, página 23). Desta forma, a hipótese primordial do autor é que há a invocação do fator social como um meio de explicação e estruturação da obra e de seu teor de idéias, fornecendo-lhe elementos para determinar a sua validade e o seu efeito sobre as massas leitoras que os absorvem. Porém, isto não se simplifica à mera dicotomia entre fatores internos e externos. “(...) Os elementos de ordem social serão filtrados através de uma concepção estética e trazidos ao nível da fatura, para entender a singularidade e a autonomia da obra” (CANDIDO, página 24). A obra pura e simples não significa um todo que se explica a si mesma, como um universo fechado (a obra é orgânica sim, mas não totalmente isolada do mundo).

A literatura e a vida social

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Nesta parte de seu ensaio, o autor relativiza a contribuição das ciências socias ao estudo literário. “Do século passado aos nossos dias, este gênero de estudos tem permanecido insatisfatório, ou ao menos incompleto, devido à falta de um sistema coerente de referência, isto é, um conjunto de formulações e conceitos que permitam limitar objetivamente o campo de análise e escapar, tanto quanto possível, ao arbítrio dos pontos de vista. Não espanta, pois, que a aplicação das ciências sociais ao estudo da arte tenha tido conseqüências freqüentemente duvidosas, propiciando relações difíceis no terreno do método. Com efeito, sociólogos, psicólogos e outros manifestam às vezes intuitos imperialistas, tendo havido momentos em que julgaram poder explicar apenas com os recursos das suas disciplinas a totalidade do fenômeno artístico. Assim, problemas que desafiavam gerações de filósofos e críticos pareceram de repente facilmente solúveis, graças a um simplismo que não raro levou ao descrédito as orientações sociológicas e psicológicas, como instrumentos de interpretação do fato literário” (CANDIDO, página 27).

O poeta e escritor transformam tudo que passa por eles, combinado a realidade que absorvem com a própria percepção, devolvendo assim ao mundo uma interpretação própria e subjetiva, longe de ser um mero espelho refletor. Assim, deve-se pensar a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte, assim como a influência que a própria obra exerce sobre o meio. A arte pode então, ser uma expressão da sociedade, não deixando de se considerar o teor de seu aspecto social, ou seja, o quanto ela está interessada nos problemas sociais. A partir do século XVIII, a literatura passa a ser também um produto social, já que expressa condições de cada civilização em que se forma. Chegou-se até a pensar até que medida a arte expressa a realidade, já que descreve modos de vida e interesses de determinadas classes, não satisfazendo assim uma interpretação plena da sociedade.

A análise do conteúdo social de uma obra segue mais como uma afirmação de princípios do que uma hipótese de investigação, já que um desenrolar negativo desta perspectiva de pesquisa sugere a uma condenação destas obras que não corresponderiam aos valores de suas respectivas ideologias.

No geral, a arte é social nos dois sentidos: tanto receptiva quanto expressiva (isto não ocorrendo de maneira tão ativa, muito menos ainda passiva). Como diz o autor: “(...) depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais” (CANDIDO, página 30). Um método de pesquisa mais apropriado investir-se-ia na análise das influências reais exercidas pelos fatores socioculturais. Vários aspectos podem ser considerados neste processo, como por exemplo: a posição social do artista, a configuração dos grupos receptores, a forma e conteúdo da obra, a fatura da mesma e sua transmissão, entre outros. Antônio Candido aponta para “quatro momentos da produção, pois: a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-se segundo os padrões da sua época, b)escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio” (CANDIDO, página 31).
A arte pressupõe algo mais amplo que as vivências do artista, apesar dele se equipar com um arsenal oriundo da própria civilização para tematizar e formar sua obra, moldando-a sempre a um público alvo. O autor faz uma distinção categórica entre arte de agregação e arte de segregação. “A primeira se inspira principalmente na experiência coletiva e visa os meios comunicativos acessíveis. Procura, neste sentido, incorporar-se a um sistema simbólico vigente, utilizando o que já está estabelecido como forma de expressão de determinada sociedade. A segunda se preocupa em renovar o sistema simbólico, criar novos recursos expressivos e, para isto, dirige-se a um número ao menos inicialmente reduzido de receptores, que se destacam, enquanto tais, da sociedade” (CANDIDO, página 33).

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Tomando o autor, a obra e o público como os três principais elementos que fundamentam e possibilitam a comunicação artística, Antônio Cândido analisa como a sociedade define a posição e o papel do artista, como a obra depende de recursos técnicos para expor os valores propostos e, de que maneira se configuram os públicos. O link entre sociedade e arte não ocorre de maneira tão simples, trata-se sim de um viés de mão dupla. “A atividade do artista estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os recursos de comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam o público. Vendo os problemas sob esta dupla perspectiva, percebe-se o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas” (CANDIDO, página 34).

1) A posição do artista

Averigua-se de que modo a posição social atribui um papel específico ao criador de arte. Isto envolve não apenas o artista individualmente, mas a formação de grupos de artistas. Há tempos que o caráter da criação rumava para uma imagem coletiva, concebendo ao povo, no conjunto, o verdadeiro criador da arte. “Hoje, está superada esta noção de cunho acentuadamente romântico, e sabemos que a obra exige necessariamente a presença do artista criador. O que chamamos arte coletiva é a arte criada pelo indivíduo a tal ponto identificado às aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele” (CANDIDO, página 34-35). Forças sociais condicionam a produção do artista, isto é fato, e “os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem a necessidades coletivas. As relações entre o artista e o grupo resumem-se a um esquema simples: “em primeiro lugar, há necessidade de um agente individual que tome a si a tarefa de criar ou apresentar a obra; em segundo lugar, ele é ou não reconhecido como criador ou intérprete pela sociedade, e o destino da obra está ligada a esta circunstância; em terceiro lugar, ele utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo de suas aspirações individuais mais profundas” (CANDIDO, página 35). A obra nasce da confluência da iniciativa individual com as condições sociais, o que levanta a questão de quais são os limites da autonomia criadora do artista, repensando assim sua função em meio a sociedade.

A arte pressupõe um indivíduo que assuma a iniciativa da obra. “Em todo caso, a existência de artista realmente profissional, que vive da sua arte, dedicando-se apenas a ela, não é freqüente entre os primitivos e constitui, via da regra, desenvolvimento mais recente. (...) Nas sociedades modernas a autonomia da arte permite atribuir a qualidade de artista mesmo a quem a pratique ao lado de outras atividades” (CANDIDO, página 38). Uma vez reconhecidos como tais, os artistas podem vincular-se, formando grupos determinados pela técnica. “Esta é, em grau maior ou menor, pressuposto de toda arte, envolvendo uma série e fórmulas e modos de fazer que, uma vez estabelecidos, devem ser conservados e transmitidos” (CANDIDO, página 39). Tais grupos tendem a diferenciar-se funcionalmente conforme o tipo de hierarquia social predominante em sua sociedade.

2) A configuração da obra

Uma obra só é realizada quando é configurada pelo artista e pelas condições sociais que determinam a sua posição. Valores sociais, ideologias e sistemas de comunicação transmudam-se na obra através do impulso de seu criador. “Os valores e ideologias contribuem principalmente para o conteúdo, enquanto as modalidades de comunicação influem mais na forma” (CANDIDO, página 40). Algo se transforma em elemento usufruído pela arte quando representa para um determinado grupo social algo singularmente prezado, o que garantiria assim certo impacto emocional. Um exemplo vem da fase bolchevista que, quando em ascendência, criou um tipo de romance coletivista, onde os protagonistas são substituídos pelo esforço anônimo das massas. Além dos valores, as técnicas de comunicação de que a sociedade dispõe influem na obra, em sua forma, e nas suas possibilidades de atuação no meio. A partir do momento em que a escrita triunfa como meio de comunicação, o panorama artístico se modifica drasticamente. “A poesia pura do nosso tempo esqueceu o auditor e visa principalmente a um leitor atento e reflexivo, capaz de viver no silêncio e na meditação o sentido do seu canto mudo” (CANDIDO, página 43).
Além disso, deve-se destacar a influência decisiva do jornal sobre a literatura, criando gêneros novos (crônicas) ou modificando outros já existentes (como o romance, por exemplo).

3) O público

Considerado pelo autor Antônio Candido como o alvo receptor da arte. Em sociedades primitivas era menos nítida a separação entre o artista e seu público. “O pequeno número de componentes da comunidade e o entrosamento íntimo das manifestações artísticas com os demais aspectos da vida social dão lugar seja a uma participação de todos na execução de um canto ou dança, seja à intervenção dum número maior de artistas, seja a uma tal conformidade do artista aos padrões e expectativas, que mal chega a se distinguir” (CANDIDO, página 44). Com o desenvolvimento das sociedades, artistas se distanciam de seu público, formando assim categorias diferentes, mas não menos conectadas quanto antes (só então pode-se falar em um público diferenciado, no sentido moderno). O artista direciona sua produção a um público, ao qual ele não conhece, mas que imagina, a uma “massa abstrata, ou virtual” (CANDIDO, página 45). Tal grupo exerce uma influência enorme sobre a produção que se vai originar por via do artista. Um exemplo são os autores que se ajustam às normas do romance comercial, tamanhos são seus desejos por fama e bens materiais (influência da indústria literária).

A técnica da escrita, também, fez com que um novo tipo de público se formasse, possuindo características próprias. Abre-se uma era onde predominam os públicos indiretos, de contatos secundários. “Mesmo quando pensamos ser nós mesmos, somos público, pertencemos a uma massa cujas reações obedecem a condicionantes do momento e do meio” (CANDIDO, página 46). A necessidade, insuspeitada por muitos, de aderir ao que nos parece distintivo de um grupo, seja ele majoritário ou minoritário, só acaba por reforçar esta nossa reação que se fixa no reconhecimento de um coletivo.