sábado, 30 de abril de 2011

Gol de placa. Autor: Vitor Lopes Moreira.

A sexta-feira amanheceu com todas as características para ser considerada um dia inserido na cotidianidade mais normal possível. Porém não o foi. Na noite anterior havia tido jogo do fluminense. Como bom apreciador da arte futebolística (e feliz rubro-negro que sou), não pude deixar de assistir. Realmente foi um bom jogo, pontuado por momentos de tensão e suspense, impasse e satisfação. Ou seja, elementos possíveis de caracterizá-lo como um thriller hollywoodiano que concorreria ao Oscar de melhor roteiro original. Melhor que esse jogo, só o do Barcelona contra o Real Madrid, que teve até Cristiano Ronaldo tendo ataque de pelanca em campo, promovendo um dos chiliques esportivos mais engraçados dos últimos tempos.

Até aí tudo bem. Dormi e acordei. Tudo normal. Descendo as escadas esbarro como meu pai na sala, de frente para a televisão ligada. Então ele pergunta: “E aí, você viu?”. Lógico que estaria me perguntando a respeito dos gols do jogo. Respondi: “Vi sim. E o Conca fez um golaço de falta, ao estilo Petkovic de ser”. Meu caro pai, senhor aposentado que passeia com o cachorro da família todo dia, me fez aquela cara de incompreensão, e, corrigindo sua pergunta inicial, que tinha sido feita de forma ambígua, tentou mais uma vez: “Estou perguntando se você viu o casamento do príncipe William”. Por essa eu não podia esperar. E ainda me contou que acordara às 4 horas da madrugada para não perder de jeito nenhum a cerimônia. Dede quando meu pai perdia um jogo para assim poder madrugar e assistir a um casamento? Os tempos estão mudando. Mas sinceramente, num presente onde o Lázaro Ramos roubou o posto de galã do José Mayer, e onde o Restatrt é considerado rock n’ roll, eu juro que nem me surpreendo mais com qualquer mudança comportamental ou social.

E o melhor eram os jornais matinais fazendo sua chamada para as notícias. Globo, Record, Band... Todas as emissoras transmitiam logo de manhã notícias e detalhes sobre o casamento. Detalhes estes até supérfluos. Que mulher havia ido com o melhor vestido, como o melhor chapéu, os convidados mais cafonas, a quantidade de pombos presentes na praça... Alguém convidou a Amy Winehouse? Com certeza a festa iria ser melhor, e ainda geraria mais notícias espalhafatosas as quais os repórteres e jornalistas poderiam expor.

O casamento do século XXI! E o século mal começou... Será que nos próximos 89 anos não vai haver nenhum casamento melhor? Nossa, fiquei até triste. Já até imagino o quanto minha futura esposa irá reclamar, pois nosso casamento não conseguirá chegar nem ao nível das rodas da carruagem real inglesa. É como chegar na caixa de bombons, na segunda-feira após a Páscoa, tentando achar o “Serenata de Amor” e... e... e só achar “Chocôco”, “Milkbar” e “Banana Mix”. É saber que nunca se terá o melhor, o bombom perfeito. Você leitor já passou por isso, e se bobear, na Páscoa da semana passada.

A Abadia de Westminter irá entrar nos futuros livros de História, mas não como o lugar onde em 1534 Henrique VIII aprovara o Ato de Supremacia, separando a Igreja da Inglaterra da Igreja Católica, e muito menos por lá estarem sepultados os corpos de Sir Isaac Newton e de Charles Darwin. Talvez seja lembrada por um casamento real, literalmente (não que tenha sido ficcional). É estranho a repercussão de tal notícia, deve ser culpa da globalização (e também do Google e do Facebook, diga-se de passagem).

De qualquer forma, parabéns ao povo inglês e à Família Real. Felicidades ao duque e à duquesa de Cambridge. E torçamos todos juntos para que eu não acorde na segunda-feira com meu pai vindo me informar quantos gols o príncipe William marcou na sua noite de lua-de-mel.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

E sobre essa semana de três dias. Autor: Vitor Lopes Moreira.

Mais uma semana chega ao fim. Mas essa termina no meio, já que logo por cima vem o feriado, transformando dias úteis (que seriam trabalhados das nove às dezessete) em preguiças que podem durar um dia inteiro, ou também em farras que podem invadir inclusive as madrugadas. Essa semana foi realmente tensa. Não, não aconteceu nada de especial. Não ganhei na loteria (porque me esqueci de jogar). Na verdade eu gastei o dinheiro destinado ao jogo com bebidas, ou seja, troquei um vício (que poderia me gerar lucro) por outro (que poderá me dar uma cirrose). Também não me apaixonei nesta semana. A respeito da segunda opção, confesso que olhei de maneira atenciosa para alguém do sexo oposto no trem quando ia para o centro da cidade. No entanto, fiz isso tentando chamar sua atenção para que assim ela viesse me vender uma paçoca. O que fiquei na dúvida era se eu queria paçoca ou jujuba.

Resolvi começar a semana tirando aquele antigo fio branco que perdurava na minha barba faz tempo. Usei a pinça, já que ele é filho único ainda (que bom). Senti-me até mais jovem. Eu o mantinha como charme, mas descobri que um fio somente não produzia o efeito intelectual que eu esperava. Fui até dar aula com mais disposição. Mas foi aí que notei que realmente envelheci. Não entendi quando um aluno chamou o outro de “pipoca doce” na sala de aula. Mas tarde, pedi para que me explicassem, e assim descobri que o termo significa viado (é o com “i” mesmo, e não o com “e”) na gíria escolar contemporânea.

De onde inventaram isso? Juro, não consigo mais ver uma carrocinha de pipoca e não imaginar o pipoqueiro vestido todo de rosa cantando I Will survive a plenos pulmões. Não pude me conter, e minha mente insana começou a pensar nas variações que poderiam surgir: pipoca doce com leite condensado (essa faz doce mesmo, chega a ser grudenta); com granulado (fiz a equivalência de granulado à purpurina, surgindo assim algo que caracterize alguém ao estilo Priscila: a rainha do deserto); metade doce, metade salgada (indecisa ainda, em cima do muro, que não saiu do armário); e outras e outras variações doentias que só a minha imaginação perturbada consegue criar quando na verdade eu deveria estar concentrado fazendo algo útil (agora, por exemplo, eu deveria estar estudando, e não aqui postando).

Aí então notei que estava ficando velho mesmo. Culturalmente falando. Não era o fio branco na barba que me abria os olhos para o tempo que passava, mas sim as gírias que eu já não entendia os significados, além dos costumes que não foram criados por minha geração, mas por uma mais nova (esta, bem colorida e de franjas, ao estilo restardado de ser).

As aulas no mestrado também tornaram esta semana especial. O mestrado é aquele lugar onde o ego de algumas pessoas é quem elabora o pensamento, reproduzindo-o através da voz. Então elas tentam impressionar, citar referências de cor (que na verdade foram decoradas na noite anterior), relacionar autores que às vezes nem leram (ou só o resumo no Google), entre outros artifícios que não merecem o epíteto de acadêmicos. Enfim, trata-se de um show intelectual (e às vezes de falcatrua) a parte.

Em meio a um debate, acusaram-me de que meus estudos de pesquisa de dissertação eram incipientes. Fiquei revoltado, não acreditei quando disseram. A primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi procurar o significado da palavra incipiente no dicionário. E foi aí que descobri que a palavra só assusta e intimida, quando na verdade não expressa muita coisa. O que ocorreu é que ela foi utilizada de uma maneira teatral tão eficaz que quase acreditei que ela representasse uma ameaça. Mas o susto passou. O que ficou da lição foi que um dia ainda quero aprender a falar colocando nas palavras significados que elas não possuem, utilizando apenas o tom de voz (aos gritos) para isso.

Mas antes de saber o significado do termo incipiente, estava eu abalado no ônibus, cabisbaixo, triste com a porrada acadêmica que havia tomado. Eis que ouço um som familiar. Daqueles que você queria não conhecer. Sim, era ele, e vinha de uma pessoa específica. Eu caracterizo-a com um nome simples: funkeiro de transporte público.

Este indivíduo entra à paisana, totalmente disfarçado. Às vezes consegue-se identificá-lo pelo boné colorido, ou pelo excesso de cordões pendurados no pescoço. Parece que ele se sente incomodado com o silêncio do ônibus, sacando assim sua arma (o celular com mp3). E é aí que o show e a falta de educação começam. Quando ele decide cantarolar, acompanhado a letra (existe letra?) da música (usei uma palavra inapropriada, eu sei), aí significa que o resto da sua viagem será um grande sacrifício ao qual você terá que sobreviver. Pensei em à campanha que já existe, e é intitulada de “Doe um fone de ouvido a um funkeiro e faça os outros passageiros mais felizes”. Quantas vezes você, que caso esteja lendo até aqui este texto, não foi abordado por tal figura urbana? E lhe garanto, é pior do que ser assaltado. No assalto, pelo menos o ladrão vai embora. É lógico que desisti de pensar que tal movimento funcionaria já que tais figuras, que não conseguem notar a existência de uma placa dizendo “É proibido ouvir som alto” (bem ao lado do trocador), talvez nem saibam qual seria o uso de um fone de ouvido, e ficassem ali quebrando a cabeça tentando achar uma utilidade para aquilo.

Cheguei esgotado em casa. Nunca um trajeto havia me cansado tanto. Queria morrer. Postei até no facebook: “Quero morrer”. Acho que algumas pessoas interpretaram de maneira errada a frase, e acharam que eu iria me matar, achando que eu estivesse catatônico e com espírito suicida. Imediatamente apareceram vários “fulano curte isso”, “beltrano curte isso”, na tela. Quando mais de sessenta pessoas passaram a curtir, eu decidi que preciso rever minhas amizades. Mas enquanto isso, tiro essas idéias da minha cabeça, como que igual a um fio branco na barba sendo puxado por uma pinça, e relaxo sentado no sofá, ouvindo o bom e velho rock n’ roll. Imagina se eu tivesse gritado ao funkeiro: “Meu caro, esse seu estilo de música é incipiente! Um dia ainda evoluirá para o rock n’ roll”.

Olha, talvez ele ficasse com medo, assim como eu fiquei. Um dia eu ainda aprendo essa arte com as palavras. Talvez o mestrado me ensine. Se não der, aprendo com a vida. Ou com o Google. Nunca gostei tanto que uma semana tivesse só três dias, pois já estava começando a me assustar com o que poderia vir a acontecer nos próximos. Que nosso feriadão não seja como essa semana de três dias.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Apologia do giz no quadro ou o ofício do professor. Autor: Vitor Lopes Moreira.

Sabe quando você não tem a menor idéia de algo e mesmo assim tem que falar sobre? Eu chamo isso de “dar aula sem preparar o conteúdo”. Um amigo me pediu pra assumir a turma dele, “quebrar um galho”, coisa simples, aulinhas para 6º, 7º e 9º ano. O lado chato é que essa notícia me chegou hoje somente, às 00:20h da madrugada.

Coisinha simples de se fazer? Apenas no campo teórico. Eu já não dou aula há muito tempo, pois me dedico exclusivamente ao meio acadêmico. Artigos, palestras, resenhas, coquetéis de lançamento de livros, mais uma resenha, um barzinho pra fazer uma média com o pessoal (quando se é pesquisador, a rede de sociabilidade é o que dita o seu currículo, lembrem-se disso), um artigo a mais, vontade de não escrever mais nada, enfim, tudo isso que todo historiador faz. Mesmo assim, fui para classe, deixando um texto do Marc Bloch ainda por ler e um artigo de mais de 40 páginas nem sequer aberto em cima da bancada, ambos para a aula de amanhã do mestrado.

O primeiro empecilho é sempre achar o local da escola. Não sei como, mas sempre me pareceu que as escolas tentam desaparecer do mapa. E ainda por cima o Google maps sempre te indica a quilometragem a menos, tipo uns 20 ou 30 quilômetros a menos. Tradução disso: prejuízo com a gasolina do carro. Professor é a única profissão onde se paga para trabalhar.

Lá fui eu, com o ar condicionado desligado, afinal, professor tem que economizar em tudo, exceto nas palavras, porque quando não se sabe o conteúdo da matéria, temos que inventar. Uma hora e meia depois começa a aula. Um detalhe importante é que não foi uma hora e meia depois de eu ter saído de casa, mas sim uma hora e meia depois do horário o qual a aula deveria ter começado. Sem apostila, sem saber o que eu teria que ensinar, sem saber nem o que eu estava fazendo ali.

Era uma correria danada, um aluno querendo bater no outro, o gordinho xingando a mãe do magrinho, o moreninho dando pontapé na amiga, e fora outras tentativas de agressões e xingamentos que eu possa não ter presenciado, já que alunos são seres ágeis e esguios, que sempre conseguem se camuflar da vista do professor. A vantagem de dar aula é que é a única profissão do mundo onde todos já foram estagiários, por pelo menos uns 15 anos. Mesmo assim quando se está lá em frente ao quadro negro, muitas coisas passam desapercebidas, o que deve ser resultado dessa tecnologia de hoje em dia, porque não é possível, no meu tempo eu não aloprava tanto em sala de aula (ou não? Não me lembro...).

O mais bacana da experiência são os comentários e diálogos. Quando você fica discutindo textos de José Murilo de Carvalho, Koselleck, Leslie Bethell e toda a trupe de historiadores, você acaba esquecendo dos questionamentos simples que uma criança pode ter. Uma aluna implicou comigo porque eu desenhei o feudo diferente do que o professor deles desenhava (já que meu castelo estava do lado direito, quando deveria estar no esquerdo, acima da floresta, a qual eu também havia desenhado posicionada no lugar errado). Outra aluna, quando eu pedia as razões para o acontecimento de algo, sempre dizia que algum personagem importante da história havia “cheirado maconha” (no final da aula eu já estava quase perguntando à ela quanto de maconha ela tinha cheirado hoje para supor que todos os acontecimentos históricos tivessem a ver com isso). Ainda teve o aluno que disse que eu estava errado, pois é impossível o século XIX começar em 1801 e terminar em 1900, pois assim ele teria apenas 99 anos, e não 100.

Mas o fato mais incrível de tudo foi a diretora ter me colocado para dar aula à duas turmas juntas. Uma de 6º ano e outra de 7º ano. Sim, isso mesmo. Caro amigo leitor, irei fazer-lhe uma simples pergunta: você já viu uma célula fazer mitose? Se você é do meio acadêmico e já esqueceu o que é isso eu lhe digo que é o nome biológico para quando a célula se divide em duas. Tendo visto isso ou não, no microscópio ou até mesmo no Discovery Channel, lhe faço a segunda pergunta: você já viu um professor fazer mitose?

Confesso que foi meu desejo do dia aprender a fazer mitose e me dividir em dois. Que inveja que eu senti das células. Meu caro, caso não tenha desistido da leitura deste artigo, e ainda esteja aqui comigo eu lhe digo uma coisa: é impossível dar duas aulas diferentes para duas turmas diferentes. Nem por mitose, e muito menos pegando o DeLorean do filme “De volta para o futuro” e voltando no tempo, ou, nem mesmo fazendo as duas coisas juntas se é possível realizar esta “simples função” a qual a diretora me encarregou hoje.

Após sobreviver a isso, peguei meu pagamento, entrei no carro e pensei estar livre. Dos alunos sim, mas o engarrafamento de quase duas horas ainda estava a minha espera. Chegando em casa, engoli o jantar (comer calmamente é um luxo usufruído por poucos hoje em dia), tomei um banho de 3 minutos e sentei na escrivaninha do meu quarto. Olhei o livro do Marc Bloch que tinha que ler para a aula do mestrado de amanhã, e ele me olhou de volta. Refleti bastante (mais ou menos uns 5 segundos, no máximo), fechei-o. O desafio não está em renovar a historiografia, mas em conseguir dar uma aula descente e sobreviver aos alunos, sem surtar ou dar um ataque de loucura. Foi aí que eu fui até a geladeira, peguei uma cerveja bem gelada e fiz um brinde a algo que eu fiz e que Marc Bloch nem sequer ensina em seu livro. Agora eu termino este post de hoje, pois ainda tenho que ir pegar minha segunda cerveja que deixei gelando.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

FICHAMENTO: FUSCO, Rosário. Vida Literária. São Paulo: S.E. Panorama Ltda, 1940 (pp.214-221). Capítulo referente ao cronista João do Rio.

O autor chama a atenção para a importância de uma obra quando esta ultrapassa a geração em que foi produzida. Como ele ressalta, “a história da influência de um autor vale muito mais do que a história mesma de sua vida” (FUSCO, página 214). Assim, reavalia como o estudo de biografias são feitos. Ater-se a fatos é mais produtivo quando se avalia o quanto a produção de um autor paira sobre as gerações futuras, influenciando os demais mesmo após a sua morte. “Enquanto vivo, a sua proximidade exerce, sem dúvida alguma, uma espécie de ação de presença no tempo, controlando as opiniões dos seus contemporâneos. Depois de morto, só os reflexos do que criou, menos do que os reflexos do que viveu, como homem, importam.

Desta forma, o autor aponta que as biografias não contribuem para maior grandeza ou descrédito de determinados autores, visto que se limitam a um espaço de tempo específico. Não vai além, não nota a posterior influência nas outras gerações, de outras épocas. Após esse argumento, Fusco diz: “Morto, João do Rio continua passeando na sua saudade, uma presença de todas as horas no seu espírito” (FUSCO, página 215). Propôs inovações originais em seus textos, mesclando literatura e jornalismo nas páginas dos jornais e dos livros. Rosário Fusco ressalta a “pobreza” dos cronistas atuais, e justifica a rememoração a João do Rio como um ponto de referência essencial para assim fazer críticas aos contemporâneos (década de 40).

“(...) Ainda é uma deformação lamentável de João do Rio que lemos, diariamente, nos jornais de todo o país. (...) Esse mérito de inovador ninguém, que seja imparcial e honesto, poderá negar á memória de João do Rio. Foi ele, inquestionavelmente, o mais original, o mais vivo, o mais ágil e o mais saboroso cronista do Brasil” (FUSCO, página 216). Rememora e descreve “criaturas desgraçadas”, pessoas comuns, agentes que faziam parte do cotidiano da cidade, mas que muitas vezes não eram enxergados da maneira mais correta. Ao comparar cronistas, é válido destacar o que o autor fala a respeito de outro escritor da época. Elogiando, diz que “dos cronistas mais populares que temos tido (...), sem que, no caso, atentemos para o valor objetivo de cada um, (...) só mesmo o Sr. Rubem Braga conseguiu, escapar, talvez, em função de sua esplendida espontaneidade anti-livresca, à influência irresistível de João do Rio” (FUSCO, página 217). Sobre outro romancista (Jorge Amado), diz que “só consegue ser magnífico cronista pela virgindade de seu talento, absolutamente livre de quaisquer compromissos literários ou estéticos” (FUSCO, página 217), mas afirma que “no dia em que o Sr. Jorge Amado aprender francês deixará de ser o romancista ótimo que é, assim como no dia em que o Sr. Rubem Braga iniciar a formação de um lastro maior de erudição passará a ser (...) o mais desinteressante cronista do mundo” (FUSCO, páginas 217 e 218).

Defendendo João do Rio, sua originalidade e magnitude, enfatiza que “(...) se enganam todos aqueles que vêem, no extraordinário cronista da cidade, apenas um escritor de frioleiras mundanas ou um explorador pouco escrupuloso dos pequenos dramas das ruas e vielas, sacando deles o mais patético sensacionalista do que uma lição de humanidade que a vida nos fornece, diariamente, para a nossa ascensão ou para a nossa queda, no abismo das concessões mais deprimentes ou das renúncias mais espetaculares” (FUSCO, página 218). A preocupação de João do Rio era ser sincero em seus escritos, característica essa que possibilitou com que desbancasse grande nomes literários da época ao lançar seu livro de estréia, “Religiões do Rio”. Trabalho este, muito elogiado pelo IHGB, tornando o autor membro-correspondente desta mesma instituição.

A poesia estaria agonizando graças a banalidade dos poetas. Se ganha em quantidade, perde-se em qualidade. “a poesia, se quiser salvar-se, tem que falar em prosa. (...) o modernismo não fez outra coisa. E o que João do Rio escreveu há cerca de 30 anos passados é tão atual nos dias que correm que ninguém ousará desmenti-lo” (FUSCO, página 220).

Muitos tentaram denegrir a imagem de Paulo Barreto. Tentaram-lhe negar talento, em vista de sua arte, e também negaram-lhe a arte, em virtude de sua vida. Concluindo, Rosário Fusco pinta uma imagem de João do Rio. “Discutido, negado, calumiado, elogiado, João do Rio conseguiu transpor seu tempo. Essa é que é a verdade. E quando lemos as reportagens modernas, que os jornais de hoje publicam, entrevistando os padeiros, pescadores, o homem do realejo ou a mulher que vende bilhetes, o chauffeur de táxis ou o cambista do estribo de bonde, o gari ou o fotografo dos jardins sem flores da cidade, nem sabe o jornalista sabe que está repetindo João do Rio, que é uma ‘escola’ de João do Rio que ele está perpetuando, para argumentar a sua glória ou para compensar o descaso com que o tratamos. Descaso ou ignorância. Porque se a sua obra não vale em si, é forçoso reconhecer a influência poderosa, que até hoje progride, como causa ou como efeito de bagagem literária infinitamente menor de muita gente que anda por aí (...)” (FUSCO, página 220).

Também romancista, era a crônica que dominava com maior desenvoltura e graça, dando gênero literário a uma espécie de escrita pertinente aos profissionais dos folhetins diários. Inovador, ao mesmo tempo que original. Não precisou de ressurreição, pois como enfatiza Rosário Fusco, João do Rio está mais vivo do que nunca, inclusive mais do que os próprios vivos que lhe prestam homenagens hoje em dia.

domingo, 3 de abril de 2011

O homem sem emoções (parte 1). Autor: Vitor Lopes Moreira

Certa vez conheci um indivíduo que se destacava em meio aos outros que passaram pela minha vida. Neste evidenciava-se nitidamente a maneira como divergia dos meios padronizados do comportamento humano. Não que buscasse estar no padrão. Sua maior virtude, como ele mesmo dizia, era não possuir nenhum laço emotivo com qualquer um com quem se relacionasse. À primeira vista, julgar-no-iam de infeliz e arrogante, louco também, mas muitos na verdade o chamavam era de mentiroso, já que afirmar algo impossível, estar convicto e acreditar em tal sacrilégio, tudo isto demonstrava que tal calúnia só podia ser obra dos que somente podem ser considerados insanos, ou talvez daqueles que apresentem fortes desvios de conduta psicológica, sendo então capazes de mentir a tal extremo e não se apavorar com as conseqüências frente aos quais a apresenta.

Não que vivesse sozinho, pelo contrário, sempre envolto de companhias. Trabalhava, pagava suas contas, respirava, sabia ler e escrever, somar e subtrair, coisas tão normais e passíveis de pessoas identificadas igualmente como normais, e aos curiosos e céticos dizia que fez um pacto com a solidão, algo fora da imaginação dos que acreditavam nesses tipos de coisas, no entanto, não cuspia isso ao mundo, até porque nem mesmo com o mundo guardava alguma relação de afeto, por mínima que fosse. Até seu modo de andar pelas ruas era típico de alguém que não se interessava pelo ambiente ao redor, passos desconjuntados e imperfeitos, pisando por pisar, arrastando para trás o solo e todas as preocupações as quais não queria ter, como que dando coices para se afastar o máximo possível. Quase não notava diferenças, não percebia se aquela velha casa por qual passava todos os dias indo para o trabalho fora pintada e agora a fachada poderia estar exibindo um tênue tom de amarelo bem diferente do verde água que tivera por muito tempo, não tomava compaixão para com o mendigo que sempre lhe pedia os mesmos cinco ou dez centavos todos os dias, e nem mesmo considerava válido tentar espiar o jornal de quem lhe sentava ao lado do ônibus, incitado puramente pela curiosidade de saber qual notícia fazia a pessoa se prender àquela página mais que nas outras. Isto tudo não lhe importava, interiorizava-se ao extremo, e até mesmo buscava decorar datas comemorativas e mesmo aniversários por pura conveniência, para demonstrar a poucos certa habilidade em se relacionar, mesmo que falsamente, de uma forma não natural, quando na verdade pouco lhe importava números encaixados em meses, dias localizados em semanas; enfim, achara um eixo de equilíbrio minuciosamente trabalhado e que buscava atualizar constantemente, na tentativa de enganar a vida, que parecia passar ao seu redor, não o enlaçando a participar de seus fatos.

Lógico, é bom notar que isto tudo se trata de uma conseqüência, algo que na verdade nem queria, mas que passou a carregar como um fardo para uma vida sem frustrações, ressentimentos e sofrimentos. Já fora normal segundo os padrões ocidentais, embora também se considerasse como detentor de uma excepcional normalidade no atual presente, diferente da que todos possuíam, é fato. Achava que se tivesse seguido os conselhos que lhe deram na infância e adolescência seria alguém na vida, mas, como sentiu e seguiu suas próprias diretrizes, embora estas não fossem algo visto com bons olhos pelos demais, tornara-se em si próprio. Mais subjetivo talvez fosse impossível, por isso defendia sua visão de mundo e suas escolhas, não tão arbitrárias estas, fugindo o máximo do que a comunidade imaginada em que vivia tratava de impor a todos.

O turbilhão de devaneio adentrou em sua vida num momento em que, como sempre, não imaginava nenhuma mudança brusca. Estático sempre permanecera, no ócio emocional produtivo de sempre, andando na esteira da vida, que parte ao infinito sem nenhum momento de parada para se celebrar algo, nem mesmo para viver as nostalgias de memórias passadas. Sempre se abstivera dos relacionamentos, e isto também se aplicava aos que envolvessem pessoas do gênero oposto. Nunca passava de uma noite, nada mais que dividir uma cama, o que acabava por excluir um “bom dia”, ou um “até logo”, nunca se comprometia, afinal, não carregava tais palavras com nenhum sentimento ou intenção verdadeira, elas apenas saíam de um modo treinado, esculpidas na dureza dos sentimentos sólidos e secos, caso os possuísse realmente, respondendo simplesmente ao esforço cotidiano de se relacionar da maneira mais superficial possível, tentando na verdade se passar por normal e feliz, e não condicionado, amargurado e triste. Até que um dia o cumprimento saiu um pouco mais alto do que fora treinado habitualmente, as palavras pareceram ganhar certa agudez, típica esta dos que estão nervosos tentando esconder a intranqüilidade do momento, fazendo com que o tom desafine um pouco, escape do que realmente tentaria se dizer. E tal desvio fora percebido pela pessoa a quem fora direcionado o gesto educado daquela tarde, de cabelos levemente cacheados em tom castanho único por demais, e sutilmente adornados com uma fita azul que fora propositalmente utilizada para combinar com a saia longa de executiva formal e com o sapatinho baixo cor de creme.

O que realmente acontecera? Foi isto que lhe passou pela cabeça. Por que acontecera de tal jeito? Foi isto o que passou pela cabeça dela num segundo momento. Os olhares se sustentaram por um meio segundo no qual a porta do elevador permanecera aberta, angustiante para qualquer apressado que quisesse sair ou entrar. E ela saiu, virando para trás só para confirmar de quem adveio aqueles dizeres diferentes, nervosos, que refletiam imaturidade sentimental, e acima de tudo, constrangimento.

Levou aquilo consigo, aquela situação estranha e nova passou a fazer parte de seu dia-a-dia. Habituou-se a pensar naquela que não lhe deu nem um segundo a mais de permanência na frente do elevador, aquela que lhe dissera uma frase simples, um “bom dia”, mas que de certa forma complexara sua mente de uma tal maneira inquietante, dessa forma que faz as pessoas revirarem na cama uma noite inteira, brigando com o lençol e o travesseiro, querendo dormir mas ao mesmo tempo querendo não parar de pensar naquilo que as aflige, que as tira o cômodo sono e lhes coloca na amargurada insônia, esta que perturba, atrapalha e chateia, mas que na verdade evidencia que há coisas muito mais importantes a se pensar, mais importantes inclusive do que essa passividade que o sono nos dá durante a noite.

(continua...)