segunda-feira, 17 de março de 2008

Fichamento: SILVA, Francisco C. T. da. “Os fascismos” In.: REIS FILHO, Daniel Aarão. Século XX. Vol. II: o tempo das crises.

Avaliar as condições sociais que possibilitaram que as atrocidades do fascismo se efetivassem, além do medo, é claro, de uma reincidência, são, para o autor, o que separa o historiador contemporâneo do historiador que escreveu no imediato pós-guerra (pois estes últimos vêem o fascismo como um movimento morto, puramente histórico e, desta forma, preso em seu próprio passado). Não é puramente histórico até porque se encontra indissociável do neonazismo.

Para o autor, dizem-se fascismos, pois cada um recobre uma só realidade política. O termo vem da expressão latina fascio. Há uma mudança no sentido do fascio, que varia de um símbolo típico da esquerda e dos movimentos trabalhadores (representando justiça e igualdade) para o campo da direita ultranacionalista. No final da década de 80, observa-se uma retomada no interesse acerca do fascismo em si, surgindo novas abordagens e também novas teorias explicativas. Tal rediscussão ressurge pois após 50 anos do fim da guerra alguns países publicam seus arquivos referentes ao fascismo, além do ressurgimento do fascismo como movimento de massas em países europeus.

Tais acontecimentos possibilitaram novas análises conceituais sobre o fascismo diferentes à historiografia de cunho demais histórica anterior aos anos 80, que via o movimento como historicamente determinado e não mais possível de se repetir.

O autor preocupa-se em apresentar uma teoria explicativa geral do movimento político chamado fascismo, porém, longe da abordagem única e exclusivista do fenômeno (típica do imediato pós-guerra), que centra a atenção no nazismo somente. Busca-se estudar o fascismo tal como movimento de origens autônomas, nacionais. Desta forma, o autor vai contra a redução do fascismo a um acidente histórico, o que limitaria seus agentes colaboradores e envolvidos.

O que sustenta tal hipótese é o caso alemão, onde a “desnazificação” é marcantemente incompleta, o que permite uma ponte visível entre o próprio fascismo histórico e o neofascismo. A partir de tais atos, há uma “demonização” da história alemã. O que não pode acontecer é o fascismo ficar circunscrito ao nazismo e, assim, exclusivamente associado à história alemã (que é o que infelizmente ocorre na imediata historiografia pós-guerra). Embora confortadora, tal versão surge como uma explicação simplista do fenômeno, reduzindo o holocausto e o fascismo a uma possibilidade histórica já encerrada.

É necessário um debate teórico sobre a natureza do fascismo, o que garantiria a autonomia de tal teoria em face dos fenômenos que o envolvem. Os fascismos, enquanto regimes autoritários antiliberais, antidemocráticos e anti-socialistas possuiriam suas próprias especificidades nacionais que, por sua vez, não descaracterizariam a universalidade e autonomia do fenômeno ante outras formas de autoritarismo. A Teoria do totalitarismo seria o que caracterizaria o fascismo como um Estado autoritário onde, espiritualmente ou materialmente, não existiria qualquer atividade humana fora do Estado.

Consequentemente, o resultado para as grandes massas seria a participação mecânica ou a militância fanática, onde o fundo comum seria a mobilização contra um inimigo comum, objetivado. Tais condições específicas de massas (elemento passivo, manipulável e capaz de furores coletivos) é o que propiciaria o domínio totalitário.

A historiografia sobre o fascismo sofre uma reviravolta a partir de 1991, quando há uma nítida ressurgência do fascismo. Há um choque com a historiografia tradicional a partir do momento em que o cenário europeu nos anos 90 mostra-se claramente tensionado pela presença de partidos e agrupamentos neofascistas. Opõe-se assim ao caráter histórico (único e não retomável) do fenômeno fascista. Ora, a explicação histórica do fascismo (como um fenômeno exclusivo de uma época) se enfraquece perante estas novas circunstâncias.

Devido à ressurgência não há uma teoria em si absoluta sobre o fascismo, até porque os eventos históricos não explicariam de fato o fascismo histórico. Tal retomada obriga ao uso de um novo arsenal teórico e de novos métodos, até porque necessita-se da explicação de movimentos fascistas pertencentes a épocas diferentes. Como conseqüência, não se pode unificar a teoria explicativa do fascismo.

A intenção primordial do autor ao longo de seu texto é a tentativa de recuperação do fascismo como grande unidade de análise, agrupamento de configurações políticas de traços diversos, marcado, entretanto, por forte coerência interna e externa. Na Europa, há uma eficaz teia de identidades e colaboração entre os diversos regimes e movimentos fascistas, muitas vezes superando adversidades históricas e nacionais. Havia, de fato, um discurso coerente e unificado em torno do fascismo.

Apesar disso, cada fascismo sempre defendeu sua plena originalidade histórica e nacional, buscando desenfreadamente por um passado justificador, componente este básico do extremo nacionalismo dos fascismos. Todos os fascismos reivindicavam originalidade histórica, porém, todos também propunham um mesmo programa, o que possibilitaria a existência de um modelo “a-histórico”. Partindo de tal proposta, o autor trabalha o conceito de fascismo como uma unidade de traços diversos que dão coerência a um fenômeno.

Propositalmente, chegar a um modelo de fascismo dependerá primordialmente de um método comparativo, onde as diversas experiências fascistas serão postas lado a lado.

O estabelecimento de uma tipologia do fascismo que contemple seu caráter ao mesmo tempo autônomo e universal é então proposta a partir da comparação das diversas experiências fascistas. É preciso levar em conta que movimentos fascistas que não chegaram ao poder apresentam um perfil mais bem desenhado do que os regimes estabelecidos, até porque muitas vezes regimes fascistas chegaram ao poder através de pactos e alianças com outras forças conservadoras, sendo obrigados a abrir mão de parte do seu ideário inicial, perdendo assim sua originalidade a partir do momento em que certas forças limitam e redesenham tais regimes.

Tal método comparativo exclui a Alemanha do papel de “modelo exclusivo”, passando a se levar em conta a ideologia, o estilo político, os objetivos e as formas de dominação.

Pensa-se, a partir de certa parte do texto, em se explicitar uma concepção de mundo própria do fascismo, comum a vários regimes. Desta forma, o fascismo aparece como algo que engloba o total, que envolve e explica toda a vida. Sendo assim, suas idéias são levadas ao extremo em que foram anunciadas, mesmo que, para outras lógicas, apareça de forma confusa ou contraditória.

A crise contemporânea, para os fascistas, é fruto das formas liberais de organização e de representação, o que de certa forma o legitima como sucessor de um sistema que não consegue manter a coesão nacional. O parlamentarismo e o liberalismo são duramente atacados pela doutrina fascista, que os julga como fragmentadores de um ideal coletivo nacional. O próprio Partido Nazista vê como papel da doutrina fascista a não-liberdade liberal, que iria contra os anseios das massas. As necessidades dos novos tempos exigiriam um Estado forte, que impediria o conflito social no plano interno, fortalecendo assim o país no plano externo, pois, tal Estado (já que é totalitário) velará pelo interesse de todos. O anti-liberalismo fascista torna-se assim uma doutrina, que vê tal idéia como um elemento desagregador, pois este lançaria os indivíduos na multidão anônima, o que destruiria seus laços de identidade e de incorporação a um certo grupo. Concluindo: o que será idealizado e realizado pelo fascismo é reunir sob a potência do Estado os objetivos de uma coesão social.

Para os fascistas, a existência de partidos políticos possibilita que haja o agrupamento de certos interesses que sejam não-nacionais, o que serviria de fonte para discórdias e divisões das nações. A democracia então romperia a unidade com o povo ao dividi-lo em unidades políticas, onde um partido anula os projetos e esforços do outro. Outro elemento marcante da ordem social liberal seria a diferenciação da esfera do público e do privado.

Opondo-se ao liberalismo desagregador, o fascismo possuiria uma variada gama de organicismos socias. O Estado é visto de forma harmoniosa (sem contradições internas), diferentemente do Estado liberal (marcado pelas divisões grupais). Tal “Estado orgânico” não presenciaria lutas e contradições entre as forças da Nação.

Em prol de tal ideal, concede-se total direito a um líder (no caso alemão, o führer), que garantiria o bem-estar da comunidade popular. Tal decisão dá ao Estado uma liberdade para a repressão nunca antes vista. Na Alemanha as fraquezas do Estado são erradicadas (a luta partidária), e com a fundação do Partido Nacional-Socialista proclama-se a unidade entre partido e Estado. Este novo Estado seria o contratipo do Estado liberal. Um Estado autoritário seria a única forma de se alcançar a verdadeira unidade entre povo e Estado.

Apesar disso, para o autor, longe de ser caracterizado como uma autocracia, o Estado fascista surge como uma policracia, com fontes autônomas de poder, com objetivos muitas vezes conflitantes, reunidos em torno de uma doutrina que serve de argamassa, girando em torno da personalidade autoritária e carismática do líder nacional. Tal organização trata-se de uma resposta à crise de identidade gerada pelo individualismo liberal, onde o papel do Estado é se erguer como uma força aglutinadora da nação. O Estado fascista não é assim somente autoritário, mas também popular.

Um Estado orgânico, integral, seria a resposta adequada ao liberalismo (que seria o elemento causal da crise, e sua existência originaria, permanentemente, as condições de desagregação da sociedade), servindo como recomposição social das nações. Porém, não se pode pensar que o estado é o objetivo central da ação fascista, mas sim um instrumento indispensável e fundamental que garantiria a própria existência da comunidade nacional. Para isso, tal processo deveria basear-se numa idéia-força, como a raça, a nação ou o império (ou seja, algo que aglutinasse o povo).

Havia um projeto fascista, capaz de arrastar multidões em direção de decisões de um líder único. E é nesse sentido que o fascismo mostra sua superioridade enquanto “metapolítica”, com base em um “Estado Corporativo”. Deve-se notar aí a profunda operação de subversão de valores exercitada pelo fascismo. Tal papel não é percebido dentro de uma historiografia clássica sobre fascismo. É preciso se entender que a principal tarefa do fascismo é fazer cessar as causas da degradação social, transcendendo ao estranhamento dos indivíduos e dotando-os de uma identidade autêntica.

Uma “teia social de novo tipo” precisa ser traçada. Em vez de tensões sociais, o fascismo busca um quadro social onde tudo, e todos, estarão harmoniosamente unidos em prol dos interesses da Nação (caráter fortemente popular). Esta nova comunidade teria como base primordial a identificação mútua entre seus membros. No caso alemão e italiano, a retórica fascista precisou levar em conta um fortíssimo movimento operário e sindical. Desta forma, segundo o próprio Hitler disse, o Nacional-Socialismo trabalharia a fim de realizar um programa que conduzisse à eliminação completa das diferenças de classes e ao estabelecimento de uma comunidade socialista. Percebe-se que se buscavam formas de organização que preenchessem o vazio deixado pela extinção das organizações sindicais. Seria um instrumento de enquadramento das massas e, principalmente, para sua vigilância.

Criavam-se, assim, as condições para o avanço de uma nova regulação econômica, onde a constituição de formas corporativas objetivaria reorganizar a economia num sistema anticrise (algo que o liberalismo não podia mais fazer). Neste caso, o fascismo abria caminho para o estabelecimento de um vínculo com o socialismo, o que garantiria ao fascismo ser o verdadeiro socialismo em si, posto que seria nacional.

Em especial, temia-se o fascismo provincial, revolucionário, ante o fascismo oficial. O verdadeiro objetivo (no caso alemão) era a formação de um “Estado potência”, onde o novo homem fascista, o “super-homem”, seria apenas a argamassa, a base deste Estado. É exatamente por se definir enquanto um regime de produtores, nacional e defensor do bem-estar coletivo, que o fascismo se define como socialista (corporativismo como base). Segundo o próprio autor, “o dirigismo estatal e a organização corporativa, além de reconstruírem uma identidade perdida ao longo da instauração da sociedade industrial, liberal e de massas, surgiam como poderoso instrumento anticrise”.

Fixando-se o que é nacional, tudo o mais é lançado ao pólo extremo do antinacional, tanto é assim que na Alemanha o ódio as judeus tomou aspecto de uma política nacional. Judeus e ciganos inserem-se na mesma realidade: são universais, cosmopolitas, falam línguas distintas, impedem a homogeneidade a coesão nacionais. A alteridade social e individual surge, assim, como objeto central de ação do fascismo (no fascismo não há espaço para o outro, tampoco para a educação e conversão desse elemento estranho em um novo homem). Este sistema ideológico faz com que o fascismo identifique em si mesmo valores absolutos, e assim, qualquer diferença se torna objeto de eliminação violenta.

O Holocausto deve ser filiado a uma concepção de mundo que nega qualquer possibilidade de um contratipo ao seu padrão, e não à história específica de um povo. Tal estranheza é a condição psicológica básica para o genocídio, sem a qual Auschwitz não seria possível.

A educação fascista foi, por excelência, geradora de tal estranhamento. Durante a efetivação do desejo fascista de instaurar uma sociedade orgânico-corporativa de fortes bases tecnológicas, incentivava-se o indivíduo ao apelo por uma modernidade maciça, desviando sua capacidade de amar os semelhantes a medida em que se apaixonava pelas máquinas.

Forma-se então um “eu regressivo”, incapaz para o amor com o outro, com quem não há identidade possível. Não são os judeus, ciganos ou gays que trazem em si a possibilidade do Holocausto; esta reside, segundo o autor, naqueles que, em virtude do estranhamento, não se habilitaram para o amor. A idéia-força, presente nos métodos educacionais, seriam pontos de partida para a construção de tal personalidade autoritária. Há, portanto, uma regressão histórica, com o retorno à massa anônima, moldável, manipulável à voz de um líder. O novo Estado fascista moldaria as emoções burguesas.

Nos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, onde o esforço e a capacidade individual deveriam se destacar, o Estado fascista impõe a idéia de pertencimento dos indivíduos a uma engrenagem.

Assim, “a alteridade é plenamente identificada com o liberalismo, com seu caráter antinatural e antinacional, com a desestruturação da comunidade orgânica nacional ou racial e com o espírito de facção do marxismo. Somente o fascismo seria o portador de uma moralidade capaz de forjar o novo homem, o bárbaro do futuro” (SILVA, página 159).

O antiliberalismo, antimarxismo, organicismo social, liderança carismática e negação da diferença marcam a possibilidade de identificação do fascismo enquanto regime ou forma de dominação específica, onde o que se distingue é seu caráter metapolítico (mobilizado para a incorporação da nação) que visa uma concepção de mundo única, excludente e terrorista. Desta forma, o fascismo surge como um caminho único, sem volta, que visa arrancar o indivíduo de uma situação de estranhamento e anomia.

O autor preocupa-se em explicar o fascismo, e não apenas o momento histórico da tomada do poder pelos fascistas, pois mesmo sem exercer plenamente o poder, o fascismo como movimento é capaz de alterar profundamente o cenário político.

A “revolução fascista” não teria como foco então alterar as condições materiais do indivíduo, muito menos em promover a distribuição da riqueza social; trata-se de salvar o coletivo (a comunidade) da aniquilação ante o outro (o estranho/estrangeiro), assumindo assim um caráter reativo e defensivo em face do perigo de fragmentação ante a hegemonia liberal.

Segundo o próprio autor, limpar o país dos antinacionais ou expulsar o imigrante estrangeiro trata-se de um objetivo que expulsa o debate em torno das causas do mal-estar e identifica um alvo para a realização do ódio. Em uma “religião de Estado”, submerge-se o indivíduo em identidades coletivas.

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