quarta-feira, 11 de junho de 2008

Resenha: CARVALHO, José Murilo de. “Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”. São Paulo: Companhia da Letras, 1987.

A importância acadêmica das pesquisas do historiador José Murilo de Carvalho fazem um contraste imenso com seu texto apresentado no livro “Os bestializados: o Rio de janeiro e a República que não foi”. A primeira impressão que tive foi que abriria mais um livro chato e monótono sobre algo a respeito da história de nosso país, bem típico de alguns historiadores que ficam tanto tempo isolados pesquisando em arquivos que parecem esquecer a arte da boa escrita, no entanto, a surpresa maior é a maneira como José Murilo de Carvalho consegue escrever um clássico da historiografia brasileira de forma simples e dinâmica, ao mesmo tempo em que expõe sua tese principal de maneira fantástica. Não se trata de um livro para os estudiosos das ciências humanas somente, mas sim algo essencial a quem se considere cidadão brasileiro.

O autor apresenta uma visão da cidade do Rio de janeiro bastante ampla ao leitor, dando ênfase a alguns problemas de cunho político, econômico e social, fruto estes da instável transição do Império para a República. A possível inexistência de um povo, no sentido político da palavra, é o que dá impulso ao trabalho do pesquisador. O autor, no entanto, reforça a idéia de que a diversidade da população do Rio de Janeiro, que crescera drasticamente em pouco tempo devido ao fato do Estado ter se tornado capital, garantiria a existência de diversos povos, e não de um único. Assim, diferentes opiniões e visões fazem parte da política no início da república, e, além do mais, pode-se também dividir a política entre os que participam dela ou não, o que José Murilo de Carvalho chama de ativos e inativos politicamente. No cenário político que acabara de se formar as eleições não serviam como instrumento de representação popular, pois eram negadas à esmagadora maioria da população. Desta forma, o autor tenta apresentar um ambiente político que não era propício à participação popular, e que por isso resultou na utilização de outros canais de atuação por parte do povo. Portanto, de indiferente à política a população do Estado fluminense não tinha nada, o que ocorria é que faziam à sua maneira a forma de agir politicamente, de expressar a cidadania, às vezes através de modos que contradiziam o que se esperaria moralmente de uma atuação política de verdade.

Essa informalidade gerou uma multiplicidade de ideologias, trazidas estas da Europa, que eram divulgadas na sociedade fluminense através da imprensa jornalística, de manifestações, de festas populares, entre outras maneiras. Tais meios representaram o modo como a população se conscientizou politicamente, segundo seus próprios costumes, seu dia-a-dia. É preciso ver que uma participação política ativa segundo os moldes europeus não vai estar presente nas práticas do povo, e é isso que o autor consegue mostrar através de uma série de exemplificações destes canais alternativos de atuação política. A população não é alheia ao que acontece na capital federal, ela só participa de uma maneira não-formal, e isso é fruto, como nos mostra o José Murilo de Carvalho, da própria República, que não permitiu a formação de cidadãos pois além de limitar o eleitorado, eliminou também do Estado a obrigação de fornecer educação ao povo. Tais medidas evidenciam a instável relação entre o governo e a população, que resulta no surgimento de uma cidadania à maneira do povo, segundo o meio social em que vivem.

O ponto alto do livro de José Murilo de Carvalho é o capítulo em que trata a respeito da revolta da Vacina. Este incidente seria a melhor expressão possível da existência de diferentes acepções acerca do que seria a cidadania, demonstrando também uma consciência política em se fazer ativa politicamente. Ocorre uma oposição à “Estadania” (termo do autor) imposta pela máquina governamental, pois através desta somente os que contribuíam seguindo os interesses do regime republicano é que seriam dignos de receber o epíteto de cidadão. Percebe-se então que nunca um humilde trabalhador estaria inserido no ambiente político proposto por essa frágil República.

A revolta, como enfatiza o autor no livro, não possuiu uma causa única. Ao contrário, foi fruto de uma multiplicidade de fatores, o que caracteriza as diferentes formas que a população via como vias de participação política, ou seja, meios diferentes da idealização do que seria a cidadania em si.

Neste caldeirão de pensamentos e ações que marcou o Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do século XX é que José Murilo de Carvalho conclui a inexistência de um povo bestializado aos acontecimentos políticos vigentes. Participações políticas formais nunca haveriam de existir, pois o próprio governo se encarregara de limitar tal ato através do voto restrito aos alfabetizados, além do uso de outros aparatos burocráticos. Porém, a Revolta da Vacina mostra como outros meios de se exercer a cidadania são possíveis, muitas vezes maneiras estas muito díspares umas das outras, mas que servem para elucidar a tese central do historiador: um regime republicano não veio a excluir o povo da via política, pois este encontrou outros canais para exprimir seus anseios, suas opiniões, ou seja, sua voz política ativa. Em suma, a consciência de nos encararmos como cidadãos existe em todos nós, e não é a máquina estatal que nos limitará, mesmo que não se transmita tais idéias da maneira de atuação vigente, deve-se expô-los da forma como melhor convir, ou da forma em que se é possível.

José Murilo contraria muitos historiadores que defendem a população de inícios da República como apática do ponto de vista político, não constituindo assim um povo em si. Em meio às idéias apresentadas pelo autor em seu livro, torna-se difícil de sustentar tais teses sobre esta possível apatia popular. Os arranjos entre o governo e as oligarquias, em nome da manutenção do poder, excluíam as massas da participação política, que por sua vez foram obrigadas a se organizarem da maneira como lhes fosse possível, estabelecendo, assim, mundos paralelos. Bestializado, como nos mostra o autor, é aquele que se guiava pela aparência do formal, pois a realidade se escondia atrás dessa formalidade. Logo, não há uma falta de intervenção do povo no seio político, e a Revolta da Vacina serve para elucidar a existência de um sentimento que defendesse a honra e os direitos do povo, mesmo que fossem tão heterogêneos o que se entenda como cidadania ou participação política.

Seja do lado da elite, Estado ou do povo, grandes nomes se fazem nesta época de intensa movimentação no Rio de Janeiro. E eis um dos grandes trunfos da obra de José Murilo de Carvalho, pois ele não mede esforços para citar diversos nomes que dão credibilidade à história sobre o início da Primeira República. Recorrendo a jornais do período, sejam escritos pela elite ou pelo povo, o autor busca detalhes mínimos para enriquecer sua obra. Percebe-se que não foram poucas as visitas aos arquivos públicos fluminenses, mas que tamanho trabalho foi recompensado pela magnitude que a obra alcançou.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Fichamento: KRAUSE-VILMAR, Dietfrid. “A negação dos assassinatos em massa do nacional-socialismo: desafios para a ciência e para a educação política”

A possibilidade de negação das atrocidades cometidas pelos nazistas é algo que o autor repudia desde o início de seu texto, a ponto de se perguntar como a sociedade se torna suscetível a este ideal tão sem lógica, chegando mesmo a ser irracional. É importante ressaltar é que estas mesmas pessoas que falam coisas que parecem absurdas não estão isentas de criarem correntes de opiniões poderosas (como foi o próprio caso do nacional-socialismo). Tal negação pública dos crimes nazistas é chamada pelos historiadores de revisionismo. Tal corrente visa principalmente relativizar as declarações feitas pelas testemunhas da época, pois há a defesa da idéia de que os sobreviventes dos campos de concentração teriam exagerado em seus relatos. Os pontos que foram negados pelos revisionistas, segundo enumera o autor do texto, são os seguintes: o número de pessoas assassinadas, as técnicas usadas no extermínio, documentos e figuras históricas que foram apresentados, os locais dos campos de morte e a existência das câmaras de gás.

No entanto, “o cerne das afirmações dos revisionistas consiste na negação do assassinato em massa dos judeus” (KRAUSE-VILMAR, página 2). Desta forma, questiona-se também a culpa dos alemães pela guerra e a dimensão dos crimes cometidos por eles. “Essas pessoas relativizam os crimes alemães acentuando os chamados crimes de guerra dos aliados, fazendo cálculos compensatórios macabros” (KRAUSE-VILMAR, página 2). A teoria mais absurda, como elucida o autor do texto, é a de que Hitler não teria conhecimento do que estava ocorrendo aos judeus, já que tais crimes não seriam ordenados pelas lideranças máximas do partido nacional-socialista (tal idéia destituiria o caráter racional e sistemático do genocídio arquitetado pelos nazistas) O holocausto poderia até mesmo ser uma invenção elaborada pela “conspiração judaica internacional” segundo os revisionistas.

O autor nos apresenta a existência de diferentes níveis de negação, que vão desde argumentos que podem ser refutados facilmente, até hipóteses técnicas ou químicas mais complexas, que não podem ser desmentidas logo de início. “Embora tentem se fazer passar por pesquisadores científicos e sérios, o método que eles empregam não correspondem aos princípios científicos” (KRAUSE-VILMAR, página 3), já que os testemunhos das vítimas são muitas vezes tratados de maneira tendenciosa, além da apresentação da Alemanha como sendo vítima da guerra e a descontextualização arbitrária de documentos e de alguns fatos históricos. “Os revisionistas gostam de copiar coisas uns dos outros e também de citar uns aos outros. Entretanto, a quantidade de material que eles apresentam, revela-se, quando examinada mais de perto, muito pobre” (KRAUSE-VILMAR, página 6).

Outro fator que permanece, no mínimo estranho, em meio ao discurso revisionista é que quase todos os trabalhos convergem ao campo de Auschwitz, o que faz com que outros crimes sejam somente tematizados de passagem. E é preciso notar também que é característico dos revisionistas o uso de uma linguagem marcada pelo ódio e pelo desprezo, longe do ideal imparcial e objetivo das pesquisas em si.

O autor contraria a idéia de que as acusações de genocídio sistemático poderiam ser fruto do pós-guerra, até porque documentos internos do regime nazista já negam por si sós tais argumentos. Argumentos revisionistas são perigosos na medida em que são postos em circulação e atingem assim a opinião pública, no entanto, “temos a obrigação de refutar tal tolice, caso a mesma venha a obter alguma repercussão junto ao público; e devemos fazê-lo, sempre com base em argumentos” (KRAUSE-VILMAR, página 8).

domingo, 8 de junho de 2008

Resenha filmográfica: "Triunfo da Vontade". Direção de Leni Riefenstahl. Ano de produção: 1934.

O documentário de Leni Riefenstahl representa um marco no que diz respeito à propaganda nazista. Encomendado pelo próprio Partido Nacional-Socialista Alemão, e autorizado pelo führer, o filme apresentado tem a intenção original de enaltecer os primeiros anos do partido para que assim as futuras gerações pudessem olhar para trás e ver como o Terceiro Reich moveu massas populares através de uma causa comum.

O documentário-propaganda é rico em imagens, principalmente do encontro de Nuremberg, reforçando o ideal nazista da época. A própria qualidade da película é algo impressionante para a época, mostrando-se de alta qualidade, talvez como um mero reflexo no próprio partido alemão. O filme é cansativo pois mostra tudo relacionado aos nazistas no cotidiano político, como discursos, passeatas, desfiles, entre outras coisas. Ou seja, evidencia-se a imagem pomposa, ufanista e de ordenamento que a Alemanha daquela época vivia. Os desfiles parecem não acabar nunca, são exibidos uns atrás dos outros, quase que sem pausa. Se for visto como mais um filme em si, o documentário pode passar despercebido pela opinião dos que assistem por ser monótono, chato e cansativo demais (até porque a duração do filme é muito grande).

Historicamente, no entanto, o documentário-propaganda é fascinante. O próprio título já expressa tudo: uma referência à vontade de potência da Alemanha nazista. A grandiosidade é a marca registrada do documentário. A narração é mínima, nula, e somente tem espaço durante os pronunciamentos dos políticos dos personagens de partido. Riqueza de detalhes mínimos, como a euforia das massas, o modo de falar dos palestrantes, o ordenamento dos desfiles, tudo isso ganha destaque no filme pois representam a concretude de um ideal, tirando desta política um possível caráter utópico.É bastante expressivo também porque mostra a realidade, o que acontece de fato. A propaganda era o ponto forte do regime de Adolf Hitler e a mesma encontra-se em destaque ao longo da película.

Em suma, ao se ver o filme sob um olhar puramente contemporâneo ele parecerá não fazer sentido, ser chato. É preciso ver o peso histórico que as imagens possuem, o caráter simbólico, e notar o quanto pesavam fatores como propaganda e políticas de massa no regime nacional-socialista da Alemanha.

sábado, 7 de junho de 2008

Resenha literária: GRASS, Günter. "Passo de Caranguejo". Tradução de Flávio Quintiliano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

O autor alemão Günter Grass aborda o tema do neonazismo, este intimamente ligado ao chamado nazismo clássico, que está mesclado à memória e a utilização desta, através mesmo de teorias revisionistas. A história gira em torno do personagem principal Paul, que tem a vida marcada pois nascera durante o naufrágio do navio alemão Wilhelm Gustloff, que representaria a expressão máxima do ideal nacional-socialista (pois tal navio não possuiria distinção de classes, todos os compartimentos seriam iguais). A partir deste fato, o personagem, que é um jornalista, é contratado por um editor para recontar essa história em um artigo e ligá-la ao que sua mãe (também sobrevivente do naufrágio) também dizia a respeito.

Com base nessa demarcação profissional do personagem, o autor do livro nos apresenta um relato cheio de detalhes a respeito do naufrágio, não excluindo personagens principais e datas. Tal abordagem, ou seja, a tentativa de Günter Grass de inserir o leitor na análise em minúcias de tal fato torna, por vezes, monótona a leitura do livro. São páginas e mais páginas de detalhes que parecem não ter fim, como horários e outras coisas não menos importantes, mas que poderiam ficar de fora porque não fariam a menor falta. Esta enxurrada de informações quase tira o aspecto mais dinâmico do livro, e o que dá certa emoção durante a leitura: a própria pesquisa do personagem Paul em busca de informações a respeito do navio na internet, além da lembrança de fatos que sua própria mãe enaltecia, o que faz com que ele entre em contato com sites neonazistas.

Durante esta busca o jornalista entra em diversos chats neonazistas para buscar informações e datas. Sua narrativa a respeito do naufrágio gira em torno de três personagens principais que estão intrinsecamente ligados: Wilhelm Gustloff, David Frankfurter e Alexander Marinesko. O primeiro seria o chefe da divisão do partido nacional-socialista na Suíça. Homem empenhado em uma ideologia, político vigoroso e exemplo de dedicação a ser seguido. O segundo personagem trata-se se um estudante de medicina judeu que, buscando defender sua identidade como tal e servir de exemplo a todo povo judaico, assassina o político alemão a tiros. Tal ato segue-se com a prisão do estudante e também com a identificação do político alemão assassinado como um exemplo a nunca ser esquecido, um “mártir” a ser rememorado. Tal identificação como “mártir” faz com o grande navio nazista da época seja batizado com seu nome, Wilhelm Gustloff. Este navio seria a expressão máxima da política alemã, pois não apresentaria divisão de classes e seria usado em prol do povo alemão, seja em excursões para os trabalhadores, ou em uma possível guerra. Alexander Marinesko é o comandante russo do submarino que lançou três torpedos contra o navio alemão, provocando seu naufrágio. Günter Grass explora ao máximo o caráter simbólico de cada ação, analisando as particularidades de cada personagem.

Em meio ao relato do naufrágio com base na história de vida destes três personagens principais, o jornalista Paul se insere na história também pois aos poucos vai se identificando com algumas características de cada um. Neste sentido, reavalia sua vida em si, seu papel como profissional, filho, marido, pai, e até mesmo seu papel como cidadão da Alemanha. A narrativa do autor do livro mistura o retrospecto jornalístico do personagem principal a respeito do naufrágio à análise de sua própria vida, o que torna a leitura do livro um pouco complicada. De uma hora para outra o relato dá espaço a uma lembrança pessoal de Paul. Esta forma de se escrever é dinâmica, e a própria lógica da história catalisa esta ação, porém, o autor ora dá demasiada importância ao relato em si, ora às lembranças pessoais do personagem. Raros são os momentos em que essa mescla de informações ocorre de maneira orgânica, por assim dizer, acompanhando o caráter de texto corrido, integrado, uno, que o autor tenta atribuir à sua obra.

A pesquisa na internet faz com que o personagem Paul entre em contato com um neonazista que assume um discurso muito similar ao que seu próprio filho, Konny, usara ao expressar sua opinião a respeito de um assunto político. Aos poucos, Paul descobre que o revisionista do outro lado da tela do computador é seu próprio filho, que encontrou bases nos discursos da própria avó para assim recontar a história do naufrágio segundo uma perspectiva que favoreça aos alemães. A partir deste ponto, o livro parece tomar um rumo totalmente diferente, o que o torna mais atrativo de se ler. Pode-se dividir o livro em dois tomos, e essa descoberta por parte do personagem representa este ponto de cisão.

Paul é dual, pois ao mesmo tempo em que busca uma maior aproximação paternal com o filho, devido a descoberta de que o mesmo se trata de um neonazista, esta ocorre de maneira intimamente jornalística e investigativa, e não de uma maneira sentimental. É um personagem problemático, que se vê preso ao passado (pois nascera durante o naufrágio) e por isso rejeita tudo o que se relacione a ele, porém, esquece de usar esta própria vivência em prol da educação moral do filho. Desta forma, Konny cresce em meio às influências da avó, que vive rememorando o navio alemão, contando suas lembranças, perpetuando um certo ideal na cabeça do menino. Günter Grass dá enfoque a esse aspecto, para ele passado e futuro convergem na mentalidade de Konny simultaneamente, pois ao mesmo tempo em que ele tem acesso ao passado (as lembranças da avó Tulla) também se encontra associado ao futuro, pois é por meio da internet, do computador, que ele divulga suas idéias e opiniões.

De início, parece que a trama em si é só um pano de fundo, e o que Günter Grass abordaria mesmo de fato seria o neonazismo. Porém, tal pano de fundo se torna essencial para mostrar como passado e futuro estão intimamente ligados, que o neonazismo não passa de algo parecido com o nazismo em si, porém, atendendo a uma conjuntura própria de sua época, encontrando meios de divulgação próprios, ou seja, tendo uma dinâmica tão específica que por fim se torna diferente do nazismo dito clássico.

O modo de escrita do autor é no mínimo desconcertante, forma-se uma espécie de tempo paralelo, pois o que ele vive se liga ao seu passado, e o que seu filho vivencia se liga ao passado do pai e da avó, e ao mesmo tempo marca o presente dele. A opção de narrativa do autor é o que podemos dizer de diferente do habitual e, portanto, ousada. Tal escolha dá um tom muito pessoal à obra de Grass.

Em suma, trata-se de uma obra muito boa a respeito do nazismo, até porque mostra que o mesmo não se pode dar como finalizado já que encontra meios diferentes que propagem a sua existência (no caso, a internet). O autor é altamente contemporâneo, pois consegue encaixar sua obra perfeitamente ao tempo em que ela é escrita, não deixando que a mesma se encontre desvinculada dos fatos históricos em si. O que pode parecer monótono e factual de início ganha complementaridade a partir do momento que a narrativa se desenrola. A obra ganha densidade ainda maior quando se lembra que o próprio Grass participou da Segunda Guerra Mundial - não como vítima, mas como membro da juventude hitlerista (o que veio à tona faz pouco tempo, resultando em imensas críticas ao autor). Günter Grass só teve consciência do mal que representou o furacão nazista muito tempo depois dos estragos, e ainda bem que tal percepção resultou na ação mais importante de todas: a produção de um excelente livro a respeito do tema. Em suma, o tema é evidenciado pelo autor com um problema muito mais atual do que simplesmente de cunho histórico.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

"História de vida: uma percepção historiográfica no dia-a-dia". Texto de Vitor Lopes Moreira.

Recordo-me muito bem do meu primeiro contato com a História, quando passei a ter esta disciplina no colégio, introduzida à grade colegial na quinta série do ensino fundamental. Fiquei impressionado com a gama de informações e conhecimentos que a mesma me presenteou. Achava-me em pleno contato com mundo, em pleno contato com a verdade, e tudo isso foi resultado do meio como a História era ensinada no colégio.

Uma História puramente factual, linearmente marcada no tempo, detentora de todas as certezas, e presa em suas datas. Olhando a objetividade deste tipo de História ensinada, até parece a História científica1 proposta por Ranke. Porém, esse método de ensino, adotado enquanto cursei o ensino fundamental e médio, não faz mais que tornar a História irrelevante no espaço em que a mesma ocupa, tanto em nosso cotidiano quanto em nosso ambiente cultural. Esse tipo de História que esteve presente na maior parte da minha vida encontrava-se, embora eu não soubesse na época, afastada de sua principal finalidade: “levar o homem a refletir sobre as formas de vida e de organização social em todos os tempos e espaços, procurando compreender e explicar suas causas e implicações2.

Passei a conhecer a “outra face” da História a partir do momento em que ingressei na faculdade (mais especificamente, quando entrei em contato com o estudo da teoria da História). Confesso que sofri um choque quando iniciei os estudos de metodologia da História. Era difícil aceitar essa outra visão da História, conflitante e dinâmica, muito diferente da qual eu estava acostumado. Foi preciso desconstruir tudo o que eu tinha aprendido até aquele momento sobre o que era História. Hoje em dia, vejo que o termo “domesticado” é bem melhor empregado do que o termo “acostumado”, logo, eu me pergunto: Por que essa domesticação aos alunos para que estudem uma História que no futuro não virá a lhes servir para nada? Sem um pingo de reflexão ou compreensão, esse método aplicado nas escolas limita intelectualmente os alunos.

Digo isto porque eu fui um dos que sofreram um “baque” imenso ao entrar em contato com esse novo saber, talvez não o sofresse se não escolhesse a disciplina História para me graduar, porém, provavelmente continuaria cego ao que realmente ocorre no mundo devido a uma limitação causada por uma infinidade de datas e nomes próprios que não iriam servir de nada para o meu desenvolvimento intelectual. Creio que as datas são importantes para nos situarmos temporalmente, porém, dedicar-mos somente à essa forma de estudo nos ocultaria o que de mais extraordinário há: as formas de pensar, os ideais, os sentimentos, entre outras coisas.

Quando o meu horizonte histórico se ampliou (a partir do momento em que entrei na faculdade), vi que a verdade está muito além do que eu imaginava (isto, é claro, se eu ignorar o possível fato da verdadeira e única verdade não existir, o que é uma possibilidade). Assim, se não teria como saber a verdade sobre o passado, então, por que continuar procurando por elas? Concordo com a opinião de Keith Jenkis3 a respeito da busca pela verdade, pois considero essencial que esta perseguição a um ideal é o que deve prevalecer.

Algo que também creio que está presente em nossa natureza é a dúvida, a incerteza. O pensamento cético4 é fundamental, e deve ser estimulado (o que não acontece nas escolas). Adota-se uma postura, nessas instituições de ensino, de que o que se está trabalhando seja o verdadeiro, o imutável, mesmo se sabendo que não possuem argumentos, e muito menos bases, para comprovar isso.

Talvez eu seja impossibilitado, no futuro, de ensinar a História tal qual ela é, devido às necessidades e aos interesses das pessoas que irão me empregar em suas instituições de ensino. Porém, lutarei para que eu possa passar aos meus alunos a História reflexiva, dinâmica (com base em fatos sim, mas não totalmente factual). Apresentar os fatos como uma cadeia de acontecimentos cristalizados está fora dos meus planos, e, tenho que admitir que o estudo da teoria da História contribuiu para que eu pensasse dessa forma diferente.

O estudo da metodologia histórica não contribuirá apenas para minha futura vida acadêmica ou profissional somente, mas sim para o meu modo de viver como um todo. Hoje em dia, por exemplo, eu abro as páginas do jornal e as leio tentando entender todo o contexto em que uma determinada notícia está inserida, buscando entender o que o autor da matéria tentou passar ao público, e, não aceitando assim de imediato o que está escrito, sentindo uma necessidade de questionamento e reflexão quase que naturais. Outro exemplo é que quando fui ler a literatura de Gabriel García Márquez5, recentemente, pude perceber a noção de tempo cíclico que o autor tenta passar aos leitores. Achei interessantíssimo, pois, creio que se eu não estudasse a teoria da História, essa noção de tempo do autor passaria despercebida por mim, além, também, do motivo pelo qual ele tenta empregar esta idéia em seu livro.

O estudo da teoria da História auxilia também no que diz respeito às outras disciplinas oferecidas pelo curso de História nas faculdades. Ao estudar a História da América , da África, ou afins, uma certa “bagagem experencial”, que é dada através da metodologia, é indispensável, pois, a partir daí o aluno se sentirá mais seguro para não cometer erros, como o anacronismo por exemplo. A noção de que a História possui um tanto de subjetividade deve ser levada em conta ao se estudar outras disciplinas. Não se deve exaltar-se, esquecendo da objetividade, que por menor que haja na História, deve existir. Não devemos pensar qualquer coisa a respeito de qualquer época, pois tudo depende de seu contexto histórico. Desta forma, a teoria serve para impor estes e outros limites.

À leitura do autor alemão Jörn Rüsen6, notei que o caráter reflexivo e o conhecimento só surgem a partir do momento em que o historiador faz uma auto-reflexão acerca de seu trabalho e de sua função na sociedade. A auto-reflexão é o início do interesse para os “produtores de história” (termo usado por Keith Jenkis, o qual gostei muito), sendo assim, compartilho a mesma idéia do autor: que a teoria da História contribui para formar a capacidade de reflexão. Os historiadores, durante seus estudos e pesquisas, devem levar em conta e pensar a respeito do objetivo de sua prática profissional. Deste modo, as fontes não dizem por si sós, e o interesse no conhecimento histórico surge a partir de que a formação de certos tipos de idéias visa suprir uma certa carência de orientação no tempo.

A meu ver, a teoria da História visa não somente explicar o que é a História em si, mas também, como o ofício do historiador se insere nas relações de poder em qualquer em qualquer formação social de que ele se origine.

Concluindo, o estudo da teoria da História visa, principalmente, mostrar que a mesma não se preocupa em rememorar o passado somente. Visa muito mais além, mostrando que a História se trata de um discurso cambiante e problemático (tendo como pretexto um aspecto do mundo, o passado) produzido por historiadores (cujas cabeças e o modo de pensar estão no presente), que trocam seu ofício uns com os outros e cujos produtos, uma vez colocados em circulação, encontram-se sujeitos a uma série de usos teoricamente infinitos, mas que na realidade correspondem a uma infinidade de bases de poder que existem naquele determinado momento, e que estruturam e distribuem ao longo de um espectro do tipo “dominante” ou “marginal” os significados das História produzidas.

Notas:

1) O contraditório é que este tipo de História, ministrada no colégio, não tinha nada de científica pelo simples fato de não haver contato com as fontes (o que Ranke propunha primordialmente), e sim, somente com uma determinada historiografia. O que qualquer autor dissesse deveria ser encarado como verdade única e imutável. E, indo contra suas formações universitárias, os próprios professores em sala de aula guiavam-se exclusivamente pelos livros didáticos, não estimulando assim os questionamentos e as dúvidas. Apresentavam somente os fatos, as certezas, sem direito às dúvidas, inibindo assim o surgimento de um pensamento cético, crítico. O que ocorria era a imposição de uma certeza, de uma verdade. Assim, ao longo do meu ensino fundamental e médio, não pude desenvolver um pensamento crítico, pois este fora abafado por uma História dita verdadeira, imposta aos alunos à força.

2) Esta definição para a finalidade do estudo da História encontra-se no livro “O que é História”, de Vavy Pacheco Borges. Segundo esta autora, presente e passado estão indissociavelmente ligados na História, tornando assim o ensino e o estudo dessa disciplina, imprescindíveis para o perfeito entendimento dos tempos modernos. Para a autora, o passado visto por si mesmo, o passado pelo passado, tem um interesse muito limitado, e, por vezes, nulo. A História que deve existir majoritariamente não deve visar a explicação desse passado distante e morto, e sim, contribuir para a explicação da realidade em que vivemos. Assim, a História, sendo uma forma de conhecimento da verdade, está sempre se constituindo, pois o conhecimento que ela produz nunca é perfeito ou acabado.

3) Keith Jenkis, em seu livro “A História Repensada”, diz que sem a verdade, certas pretensões (objetividade, essência, essencial, imparcialidade) que determinam as coisas de uma vez por todas, ficariam impotentes. Segundo o autor, a objetividade é um fator importantíssimo para que se possa haver a discriminação entre relatos rivais envolvendo um mesmo problema.

4) Segundo Plínio Junqueira Smith (em seu livro: “Ceticismo”), para que uma pessoa conheça de fato algo, três condições devem ser cumpridas. Em primeiro lugar, a pessoa precisa crer naquilo que diz, ou seja, ela precisa acreditar no que está dizendo, pois, alguém pode muito bem dizer uma coisa que de fato é verdadeira, mas que não acredita. Assim, essa pessoa não sabe o que afirma. Seguido disso, o autor diz que obviamente, nossas crenças podem ser falsas – e uma crença falsa nunca é conhecimento. Então, a segunda condição necessária para o conhecimento é que a crença seja verdadeira. Por último, quando um indivíduo tem uma crença verdadeira, ele deve ser capaz de dar uma boa razão para a sua crença, deve ser capaz de justificá-la adequadamente. Portanto, Plínio Junqueira Smith afirma que uma pessoa sabe alguma coisa quando cumpre essas três condições: (1) ela precisa crer no que diz (ou pensa); (2) sua crença tem que ser verdadeira; (3) ela precisa dar uma boa razão ou justificar adequadamente a sua crença. Assim, o autor define o conhecimento como uma “crença verdadeira justificada”.

5) Em seu livro, “Cem anos de solidão”, Gabriel García Márquez, através de um personagem (a matriarca da família Buendía, que se chama Úrsula), tenta fixar a idéia de tempo cíclico nos leitores. Úrsula vive evocando que o tempo volta a se repetir devido à semelhança entre os integrantes de sua família. As características de uma pessoa estão, muitas das vezes, presentes em seu sucessor. A própria genética atua como o fator que torna o tempo a agir ciclicamente. Talvez o autor adote essa idéia somente como a opinião de seu personagem, ou, que a crença de seu personagem seja a sua própria.

6) Em seu texto “Tarefa e Função de uma Teoria da História” (capítulo 1 do livro “Razão Histórica. Teoria da História: os fundamentos da ciência moderna”).


Fichamento: GOODRICK-CLARKE, Nicholas. "Sol Negro: cultos arianos, nazismo esotérico e políticas de identidade". São Paulo: Madras, 2004 (pp.397-401).

O autor afirma que a extrema direita racista européia, e mundial, não “cresceu em um vácuo” (GOODRICK-CLARKE, página 397), mas sim como uma resposta ao crescente número de imigrantes que adentraram em diversos países europeus e também nos EUA, no final da década de 50. Assim, grupos neonazistas passaram a defender a idéia de que um domínio racial branco poderia estar ameaçado, o que fez com que o princípio de raça ganhasse destaque em meio aos cultos arianos. Muitas políticas adotadas também possuíam um caráter altamente discriminatório. “Privilégios fornecidos pelo governo com base na raça, por sua vez, estimularam o crescimento da extrema direita racista” (GOODRICK-CLARKE, página 398). Percebe-se um apoio liberal da ação afirmativa, que ultrapassa o caráter meramente racista.

Os brancos viveriam em meio a uma era degenerada pelas misturas raciais e sociais. “Cultos arianos e o nazismo esotérico afirmam poderosas mitologias para negar o declínio do poder branco no mundo” (GOODRICK-CLARKE, página 398), o que é expresso pelo pessimismo cultural de Miguel Serrano e Savitri Devi, por exemplo. Lamenta-se a derrota alemã na II Guerra Mundial e o triunfo do liberalismo na ordem internacional. Desta forma, um multiculturalismo, somado à imigração, gera tais cultos que buscam o reforço de uma identidade com base na raça. Há “a ascensão de um novo nacionalismo como uma cultura de resistência às recentes forças de globalização e de imigração” (GOODRICK-CLARKE, página 399). Vê-se muitas vezes o aumento dasimigrações como fator resultante de problemas econômicos e culturais.

“O surgimento de gangues racistas de skinheads, a música do white power e a transformação do racismo neonazista em novas religiões populares de identidade branca espelham claramente os crescentes níveis de imigração para países ocidentais e as conseqüentes pressões na direção do multiculturalismo” (GOODRICK-CLARKE, página 401). Nota-se que a desestabilização das democracias ocidentais no pós-guerra geraria ações baseadas em cultos e esoterismo, somadas ao reforço da extrema direita, como um meio de retorno ao passado, onde o que se busca de fato é a legitimação da superioridade de uma identidade branca.