sábado, 7 de junho de 2008

Resenha literária: GRASS, Günter. "Passo de Caranguejo". Tradução de Flávio Quintiliano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

O autor alemão Günter Grass aborda o tema do neonazismo, este intimamente ligado ao chamado nazismo clássico, que está mesclado à memória e a utilização desta, através mesmo de teorias revisionistas. A história gira em torno do personagem principal Paul, que tem a vida marcada pois nascera durante o naufrágio do navio alemão Wilhelm Gustloff, que representaria a expressão máxima do ideal nacional-socialista (pois tal navio não possuiria distinção de classes, todos os compartimentos seriam iguais). A partir deste fato, o personagem, que é um jornalista, é contratado por um editor para recontar essa história em um artigo e ligá-la ao que sua mãe (também sobrevivente do naufrágio) também dizia a respeito.

Com base nessa demarcação profissional do personagem, o autor do livro nos apresenta um relato cheio de detalhes a respeito do naufrágio, não excluindo personagens principais e datas. Tal abordagem, ou seja, a tentativa de Günter Grass de inserir o leitor na análise em minúcias de tal fato torna, por vezes, monótona a leitura do livro. São páginas e mais páginas de detalhes que parecem não ter fim, como horários e outras coisas não menos importantes, mas que poderiam ficar de fora porque não fariam a menor falta. Esta enxurrada de informações quase tira o aspecto mais dinâmico do livro, e o que dá certa emoção durante a leitura: a própria pesquisa do personagem Paul em busca de informações a respeito do navio na internet, além da lembrança de fatos que sua própria mãe enaltecia, o que faz com que ele entre em contato com sites neonazistas.

Durante esta busca o jornalista entra em diversos chats neonazistas para buscar informações e datas. Sua narrativa a respeito do naufrágio gira em torno de três personagens principais que estão intrinsecamente ligados: Wilhelm Gustloff, David Frankfurter e Alexander Marinesko. O primeiro seria o chefe da divisão do partido nacional-socialista na Suíça. Homem empenhado em uma ideologia, político vigoroso e exemplo de dedicação a ser seguido. O segundo personagem trata-se se um estudante de medicina judeu que, buscando defender sua identidade como tal e servir de exemplo a todo povo judaico, assassina o político alemão a tiros. Tal ato segue-se com a prisão do estudante e também com a identificação do político alemão assassinado como um exemplo a nunca ser esquecido, um “mártir” a ser rememorado. Tal identificação como “mártir” faz com o grande navio nazista da época seja batizado com seu nome, Wilhelm Gustloff. Este navio seria a expressão máxima da política alemã, pois não apresentaria divisão de classes e seria usado em prol do povo alemão, seja em excursões para os trabalhadores, ou em uma possível guerra. Alexander Marinesko é o comandante russo do submarino que lançou três torpedos contra o navio alemão, provocando seu naufrágio. Günter Grass explora ao máximo o caráter simbólico de cada ação, analisando as particularidades de cada personagem.

Em meio ao relato do naufrágio com base na história de vida destes três personagens principais, o jornalista Paul se insere na história também pois aos poucos vai se identificando com algumas características de cada um. Neste sentido, reavalia sua vida em si, seu papel como profissional, filho, marido, pai, e até mesmo seu papel como cidadão da Alemanha. A narrativa do autor do livro mistura o retrospecto jornalístico do personagem principal a respeito do naufrágio à análise de sua própria vida, o que torna a leitura do livro um pouco complicada. De uma hora para outra o relato dá espaço a uma lembrança pessoal de Paul. Esta forma de se escrever é dinâmica, e a própria lógica da história catalisa esta ação, porém, o autor ora dá demasiada importância ao relato em si, ora às lembranças pessoais do personagem. Raros são os momentos em que essa mescla de informações ocorre de maneira orgânica, por assim dizer, acompanhando o caráter de texto corrido, integrado, uno, que o autor tenta atribuir à sua obra.

A pesquisa na internet faz com que o personagem Paul entre em contato com um neonazista que assume um discurso muito similar ao que seu próprio filho, Konny, usara ao expressar sua opinião a respeito de um assunto político. Aos poucos, Paul descobre que o revisionista do outro lado da tela do computador é seu próprio filho, que encontrou bases nos discursos da própria avó para assim recontar a história do naufrágio segundo uma perspectiva que favoreça aos alemães. A partir deste ponto, o livro parece tomar um rumo totalmente diferente, o que o torna mais atrativo de se ler. Pode-se dividir o livro em dois tomos, e essa descoberta por parte do personagem representa este ponto de cisão.

Paul é dual, pois ao mesmo tempo em que busca uma maior aproximação paternal com o filho, devido a descoberta de que o mesmo se trata de um neonazista, esta ocorre de maneira intimamente jornalística e investigativa, e não de uma maneira sentimental. É um personagem problemático, que se vê preso ao passado (pois nascera durante o naufrágio) e por isso rejeita tudo o que se relacione a ele, porém, esquece de usar esta própria vivência em prol da educação moral do filho. Desta forma, Konny cresce em meio às influências da avó, que vive rememorando o navio alemão, contando suas lembranças, perpetuando um certo ideal na cabeça do menino. Günter Grass dá enfoque a esse aspecto, para ele passado e futuro convergem na mentalidade de Konny simultaneamente, pois ao mesmo tempo em que ele tem acesso ao passado (as lembranças da avó Tulla) também se encontra associado ao futuro, pois é por meio da internet, do computador, que ele divulga suas idéias e opiniões.

De início, parece que a trama em si é só um pano de fundo, e o que Günter Grass abordaria mesmo de fato seria o neonazismo. Porém, tal pano de fundo se torna essencial para mostrar como passado e futuro estão intimamente ligados, que o neonazismo não passa de algo parecido com o nazismo em si, porém, atendendo a uma conjuntura própria de sua época, encontrando meios de divulgação próprios, ou seja, tendo uma dinâmica tão específica que por fim se torna diferente do nazismo dito clássico.

O modo de escrita do autor é no mínimo desconcertante, forma-se uma espécie de tempo paralelo, pois o que ele vive se liga ao seu passado, e o que seu filho vivencia se liga ao passado do pai e da avó, e ao mesmo tempo marca o presente dele. A opção de narrativa do autor é o que podemos dizer de diferente do habitual e, portanto, ousada. Tal escolha dá um tom muito pessoal à obra de Grass.

Em suma, trata-se de uma obra muito boa a respeito do nazismo, até porque mostra que o mesmo não se pode dar como finalizado já que encontra meios diferentes que propagem a sua existência (no caso, a internet). O autor é altamente contemporâneo, pois consegue encaixar sua obra perfeitamente ao tempo em que ela é escrita, não deixando que a mesma se encontre desvinculada dos fatos históricos em si. O que pode parecer monótono e factual de início ganha complementaridade a partir do momento que a narrativa se desenrola. A obra ganha densidade ainda maior quando se lembra que o próprio Grass participou da Segunda Guerra Mundial - não como vítima, mas como membro da juventude hitlerista (o que veio à tona faz pouco tempo, resultando em imensas críticas ao autor). Günter Grass só teve consciência do mal que representou o furacão nazista muito tempo depois dos estragos, e ainda bem que tal percepção resultou na ação mais importante de todas: a produção de um excelente livro a respeito do tema. Em suma, o tema é evidenciado pelo autor com um problema muito mais atual do que simplesmente de cunho histórico.

Um comentário:

A. disse...

Parece ser interessante, mais o Diário de Anne Frank é melhor. Anne escrevia muito bem, se não tivesse morrido seria uma grande escritora, sem dúvida. Sábia contar estórias muito bem e em nenhum momento a leitura ficou monótona.
Gostei da foto do Márquez, é tú mané quando ficar mais velho, hehehe...