quinta-feira, 7 de abril de 2011

Apologia do giz no quadro ou o ofício do professor. Autor: Vitor Lopes Moreira.

Sabe quando você não tem a menor idéia de algo e mesmo assim tem que falar sobre? Eu chamo isso de “dar aula sem preparar o conteúdo”. Um amigo me pediu pra assumir a turma dele, “quebrar um galho”, coisa simples, aulinhas para 6º, 7º e 9º ano. O lado chato é que essa notícia me chegou hoje somente, às 00:20h da madrugada.

Coisinha simples de se fazer? Apenas no campo teórico. Eu já não dou aula há muito tempo, pois me dedico exclusivamente ao meio acadêmico. Artigos, palestras, resenhas, coquetéis de lançamento de livros, mais uma resenha, um barzinho pra fazer uma média com o pessoal (quando se é pesquisador, a rede de sociabilidade é o que dita o seu currículo, lembrem-se disso), um artigo a mais, vontade de não escrever mais nada, enfim, tudo isso que todo historiador faz. Mesmo assim, fui para classe, deixando um texto do Marc Bloch ainda por ler e um artigo de mais de 40 páginas nem sequer aberto em cima da bancada, ambos para a aula de amanhã do mestrado.

O primeiro empecilho é sempre achar o local da escola. Não sei como, mas sempre me pareceu que as escolas tentam desaparecer do mapa. E ainda por cima o Google maps sempre te indica a quilometragem a menos, tipo uns 20 ou 30 quilômetros a menos. Tradução disso: prejuízo com a gasolina do carro. Professor é a única profissão onde se paga para trabalhar.

Lá fui eu, com o ar condicionado desligado, afinal, professor tem que economizar em tudo, exceto nas palavras, porque quando não se sabe o conteúdo da matéria, temos que inventar. Uma hora e meia depois começa a aula. Um detalhe importante é que não foi uma hora e meia depois de eu ter saído de casa, mas sim uma hora e meia depois do horário o qual a aula deveria ter começado. Sem apostila, sem saber o que eu teria que ensinar, sem saber nem o que eu estava fazendo ali.

Era uma correria danada, um aluno querendo bater no outro, o gordinho xingando a mãe do magrinho, o moreninho dando pontapé na amiga, e fora outras tentativas de agressões e xingamentos que eu possa não ter presenciado, já que alunos são seres ágeis e esguios, que sempre conseguem se camuflar da vista do professor. A vantagem de dar aula é que é a única profissão do mundo onde todos já foram estagiários, por pelo menos uns 15 anos. Mesmo assim quando se está lá em frente ao quadro negro, muitas coisas passam desapercebidas, o que deve ser resultado dessa tecnologia de hoje em dia, porque não é possível, no meu tempo eu não aloprava tanto em sala de aula (ou não? Não me lembro...).

O mais bacana da experiência são os comentários e diálogos. Quando você fica discutindo textos de José Murilo de Carvalho, Koselleck, Leslie Bethell e toda a trupe de historiadores, você acaba esquecendo dos questionamentos simples que uma criança pode ter. Uma aluna implicou comigo porque eu desenhei o feudo diferente do que o professor deles desenhava (já que meu castelo estava do lado direito, quando deveria estar no esquerdo, acima da floresta, a qual eu também havia desenhado posicionada no lugar errado). Outra aluna, quando eu pedia as razões para o acontecimento de algo, sempre dizia que algum personagem importante da história havia “cheirado maconha” (no final da aula eu já estava quase perguntando à ela quanto de maconha ela tinha cheirado hoje para supor que todos os acontecimentos históricos tivessem a ver com isso). Ainda teve o aluno que disse que eu estava errado, pois é impossível o século XIX começar em 1801 e terminar em 1900, pois assim ele teria apenas 99 anos, e não 100.

Mas o fato mais incrível de tudo foi a diretora ter me colocado para dar aula à duas turmas juntas. Uma de 6º ano e outra de 7º ano. Sim, isso mesmo. Caro amigo leitor, irei fazer-lhe uma simples pergunta: você já viu uma célula fazer mitose? Se você é do meio acadêmico e já esqueceu o que é isso eu lhe digo que é o nome biológico para quando a célula se divide em duas. Tendo visto isso ou não, no microscópio ou até mesmo no Discovery Channel, lhe faço a segunda pergunta: você já viu um professor fazer mitose?

Confesso que foi meu desejo do dia aprender a fazer mitose e me dividir em dois. Que inveja que eu senti das células. Meu caro, caso não tenha desistido da leitura deste artigo, e ainda esteja aqui comigo eu lhe digo uma coisa: é impossível dar duas aulas diferentes para duas turmas diferentes. Nem por mitose, e muito menos pegando o DeLorean do filme “De volta para o futuro” e voltando no tempo, ou, nem mesmo fazendo as duas coisas juntas se é possível realizar esta “simples função” a qual a diretora me encarregou hoje.

Após sobreviver a isso, peguei meu pagamento, entrei no carro e pensei estar livre. Dos alunos sim, mas o engarrafamento de quase duas horas ainda estava a minha espera. Chegando em casa, engoli o jantar (comer calmamente é um luxo usufruído por poucos hoje em dia), tomei um banho de 3 minutos e sentei na escrivaninha do meu quarto. Olhei o livro do Marc Bloch que tinha que ler para a aula do mestrado de amanhã, e ele me olhou de volta. Refleti bastante (mais ou menos uns 5 segundos, no máximo), fechei-o. O desafio não está em renovar a historiografia, mas em conseguir dar uma aula descente e sobreviver aos alunos, sem surtar ou dar um ataque de loucura. Foi aí que eu fui até a geladeira, peguei uma cerveja bem gelada e fiz um brinde a algo que eu fiz e que Marc Bloch nem sequer ensina em seu livro. Agora eu termino este post de hoje, pois ainda tenho que ir pegar minha segunda cerveja que deixei gelando.

8 comentários:

Anônimo disse...

É, querido Vitor, é mais ou menos assim que me sinto todos os dias indo dar aula a duas horas de distância da minha casa e vendo os alunos berrando, correndo e dando sinais claros de falta de educação. Infelizmente ou felizmente, todo dia que saio da escola chego a conclusão que nasci pra isso, mas que mesmo assim eles poderiam ser um pouco mais receptivos e educados, rs.
Ser professor exige algo além de paciência e didática... tem que ter muita alma! E isso, agora infelizmente, não é citado e nós não conseguimos aprender nos livros dos cânones da Filosofia, História, etc.
Ser professor é (con)viver a escola, os seus alunos e todos os seus poréns!

Kelly K disse...

Acredito que a geração de hoje esteja bem mais dispersa do que a sua e a minha geração. Já que alem da relação aluno-aluno, o prof ainda tem que competir com as novas tecnologias. O prof tem que se virar em dois, para conseguir a atenção dos alunos. Uns preferem ignorar.
Ótima crônica, Vitor.

Rodrigo Camacho disse...

Vitor, muito bom o seu post! Achei bastante ilustrativa a parte da mitose, me rendeu algumas risadas...mas imagino o quão difícil deva ser mesmo a rotina de um professor ao lidar com alunos dispersos, mal educados ou mesmo desintessados, o que aumenta ainda mais a minha admiração por essa nobre profissão. O reconhecimento virá no futuro! ;)

Roberto Lobo disse...

Filhote,
As vezes algumas cervejas bem geladas facilitam o processo de aprendizagem mesmo daqueles com dificuldade de compreensão teórica...
Te amo. Beto.

Leonardo Monteiro disse...

Foi ótimo, Vitor (tanto o texto quanto sua experiência :P)! Pelo menos você não foi enganado por uma escola particular da alta sociedade. Diz pra sua aluna, antes de tudo, que se maconha e o diabo explicassem tudo, a profissão de historiador não existiria. E o Marc Bloch não chegou a falar de magistério e da importância da cerveja você sabe o porquê...

Unknown disse...

Excelente Vitor! Me senti como uma professora nessa sua tão minuciosa descrição de como é ser um professor! Rs! Ótimo texto! Parabéns!

Ge disse...

Adorei seu blogger Vitor! Vou começar a dar aula esse mês e tô morrendo de medo desse tipo de situação... ainda mais com pré-vestibular!
Vai ser difícil, mas vamo-que-vamo!

Marina Jardim disse...

Adorei, querido! bjoca