domingo, 3 de abril de 2011

O homem sem emoções (parte 1). Autor: Vitor Lopes Moreira

Certa vez conheci um indivíduo que se destacava em meio aos outros que passaram pela minha vida. Neste evidenciava-se nitidamente a maneira como divergia dos meios padronizados do comportamento humano. Não que buscasse estar no padrão. Sua maior virtude, como ele mesmo dizia, era não possuir nenhum laço emotivo com qualquer um com quem se relacionasse. À primeira vista, julgar-no-iam de infeliz e arrogante, louco também, mas muitos na verdade o chamavam era de mentiroso, já que afirmar algo impossível, estar convicto e acreditar em tal sacrilégio, tudo isto demonstrava que tal calúnia só podia ser obra dos que somente podem ser considerados insanos, ou talvez daqueles que apresentem fortes desvios de conduta psicológica, sendo então capazes de mentir a tal extremo e não se apavorar com as conseqüências frente aos quais a apresenta.

Não que vivesse sozinho, pelo contrário, sempre envolto de companhias. Trabalhava, pagava suas contas, respirava, sabia ler e escrever, somar e subtrair, coisas tão normais e passíveis de pessoas identificadas igualmente como normais, e aos curiosos e céticos dizia que fez um pacto com a solidão, algo fora da imaginação dos que acreditavam nesses tipos de coisas, no entanto, não cuspia isso ao mundo, até porque nem mesmo com o mundo guardava alguma relação de afeto, por mínima que fosse. Até seu modo de andar pelas ruas era típico de alguém que não se interessava pelo ambiente ao redor, passos desconjuntados e imperfeitos, pisando por pisar, arrastando para trás o solo e todas as preocupações as quais não queria ter, como que dando coices para se afastar o máximo possível. Quase não notava diferenças, não percebia se aquela velha casa por qual passava todos os dias indo para o trabalho fora pintada e agora a fachada poderia estar exibindo um tênue tom de amarelo bem diferente do verde água que tivera por muito tempo, não tomava compaixão para com o mendigo que sempre lhe pedia os mesmos cinco ou dez centavos todos os dias, e nem mesmo considerava válido tentar espiar o jornal de quem lhe sentava ao lado do ônibus, incitado puramente pela curiosidade de saber qual notícia fazia a pessoa se prender àquela página mais que nas outras. Isto tudo não lhe importava, interiorizava-se ao extremo, e até mesmo buscava decorar datas comemorativas e mesmo aniversários por pura conveniência, para demonstrar a poucos certa habilidade em se relacionar, mesmo que falsamente, de uma forma não natural, quando na verdade pouco lhe importava números encaixados em meses, dias localizados em semanas; enfim, achara um eixo de equilíbrio minuciosamente trabalhado e que buscava atualizar constantemente, na tentativa de enganar a vida, que parecia passar ao seu redor, não o enlaçando a participar de seus fatos.

Lógico, é bom notar que isto tudo se trata de uma conseqüência, algo que na verdade nem queria, mas que passou a carregar como um fardo para uma vida sem frustrações, ressentimentos e sofrimentos. Já fora normal segundo os padrões ocidentais, embora também se considerasse como detentor de uma excepcional normalidade no atual presente, diferente da que todos possuíam, é fato. Achava que se tivesse seguido os conselhos que lhe deram na infância e adolescência seria alguém na vida, mas, como sentiu e seguiu suas próprias diretrizes, embora estas não fossem algo visto com bons olhos pelos demais, tornara-se em si próprio. Mais subjetivo talvez fosse impossível, por isso defendia sua visão de mundo e suas escolhas, não tão arbitrárias estas, fugindo o máximo do que a comunidade imaginada em que vivia tratava de impor a todos.

O turbilhão de devaneio adentrou em sua vida num momento em que, como sempre, não imaginava nenhuma mudança brusca. Estático sempre permanecera, no ócio emocional produtivo de sempre, andando na esteira da vida, que parte ao infinito sem nenhum momento de parada para se celebrar algo, nem mesmo para viver as nostalgias de memórias passadas. Sempre se abstivera dos relacionamentos, e isto também se aplicava aos que envolvessem pessoas do gênero oposto. Nunca passava de uma noite, nada mais que dividir uma cama, o que acabava por excluir um “bom dia”, ou um “até logo”, nunca se comprometia, afinal, não carregava tais palavras com nenhum sentimento ou intenção verdadeira, elas apenas saíam de um modo treinado, esculpidas na dureza dos sentimentos sólidos e secos, caso os possuísse realmente, respondendo simplesmente ao esforço cotidiano de se relacionar da maneira mais superficial possível, tentando na verdade se passar por normal e feliz, e não condicionado, amargurado e triste. Até que um dia o cumprimento saiu um pouco mais alto do que fora treinado habitualmente, as palavras pareceram ganhar certa agudez, típica esta dos que estão nervosos tentando esconder a intranqüilidade do momento, fazendo com que o tom desafine um pouco, escape do que realmente tentaria se dizer. E tal desvio fora percebido pela pessoa a quem fora direcionado o gesto educado daquela tarde, de cabelos levemente cacheados em tom castanho único por demais, e sutilmente adornados com uma fita azul que fora propositalmente utilizada para combinar com a saia longa de executiva formal e com o sapatinho baixo cor de creme.

O que realmente acontecera? Foi isto que lhe passou pela cabeça. Por que acontecera de tal jeito? Foi isto o que passou pela cabeça dela num segundo momento. Os olhares se sustentaram por um meio segundo no qual a porta do elevador permanecera aberta, angustiante para qualquer apressado que quisesse sair ou entrar. E ela saiu, virando para trás só para confirmar de quem adveio aqueles dizeres diferentes, nervosos, que refletiam imaturidade sentimental, e acima de tudo, constrangimento.

Levou aquilo consigo, aquela situação estranha e nova passou a fazer parte de seu dia-a-dia. Habituou-se a pensar naquela que não lhe deu nem um segundo a mais de permanência na frente do elevador, aquela que lhe dissera uma frase simples, um “bom dia”, mas que de certa forma complexara sua mente de uma tal maneira inquietante, dessa forma que faz as pessoas revirarem na cama uma noite inteira, brigando com o lençol e o travesseiro, querendo dormir mas ao mesmo tempo querendo não parar de pensar naquilo que as aflige, que as tira o cômodo sono e lhes coloca na amargurada insônia, esta que perturba, atrapalha e chateia, mas que na verdade evidencia que há coisas muito mais importantes a se pensar, mais importantes inclusive do que essa passividade que o sono nos dá durante a noite.

(continua...)

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom Vitor, realmente bem escrito ... aguardo a parte II agora rss
wiliam romanholi

Vitor Lopes Moreira disse...

Obrigado William, em breve posto as partes restantes ...
Tentarei blogar semanalmente agora. Não posso perder esse costume.
Um abraço meu camarada!

João disse...

Adorei esse conto, já te disse isso.
Parabéns!

Vitor Lopes Moreira disse...

Tava dando uma olhada no teu blog tb João. Mt boa a crônica sobre o poeta.
Deixei meu comentário lá.
Vou postar o restante deste conto aos poucos, pro pessoal que ainda não leu (diferendete de vc...rs).
Um abraço João meu caro!